Capítulo 6

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  Helen batucava no teclado de um computador Amstrad jurássico que ficava no hall da nossa casa, em cima do carrinho de chá (se você quisesse enviar um e-mail, tinha que abrir as abas do carrinho e sentar em um banco baixinho com os joelhos colados nas prateleiras quentes). 

— Para quem você está mandando esse e-mail? — perguntei. Helen virou a cabeça para me olhar na porta, franziu a testa e a visão das franjas dos estofados e respondeu: 

— Para ninguém. Estou escrevendo uma coisa... Ahn... É um roteiro para a tevê. É Sobre uma detetive. 

Fiquei pasma e muda. Helen vivia dizendo que era praticamente analfabeta, e chegava mesmo a se gabar disso. 

— É ótimo colocar tudo para fora — explicou ela. — Tenho muito material e o texto está muito bom. Vou imprimir o início para você.

 A impressora da Idade da Pedra rangeu e guinchou, por quase dez minutos, e então Helen arrancou uma única página com um floreio e a entregou para mim. Ainda muda, euli.   

  ESTRELA DA SORTE 

de Helen Walsh, baseado em fatos reais  

  Cena Um: Sala de uma agência de detetives pequena, mas valorosa. Duas mulheres em cena, uma jovem e linda (eu) e a outra velha e feia (mamãe). A jovem está com os pés sobre a mesa.

A velha não está com os pés sobre a mesa por causa do reumatismo. Dia calmo.Tranqüilo. Chato. Um carro estaciona do lado de fora. Um homem entra. Bonitão. Pés grandes. Olha em volta.  

  Eu: Em que posso ajudá-lo? 

Homem: Estou procurando uma mulher. 

Eu: Isto aqui não é um bordel 

Homem: Não, eu quis dizer... Procuro minha namorada. Ela está desaparecida. 

Eu: Já perguntou por ela aos rapazes de farda azul? 

Homem: Sim, mas eles não podem procurá-la antes de completar vinte e quatro horas desaparecida. Além do mais, eles acham que nós tivemos uma briga, simplesmente. 

Eu (Tirando os pés da mesa, estreitando os olhos e me Inclinando para frente.): E vocês brigaram? 

Homem (Com cara de desconsolo.): Sim. 

Eu: Qual o motivo da briga? Outro homem? Alguém com quem ela trabalha? 

Homem (Ainda desconsolado.): Sim.  

Eu: Ela anda trabalhando até tarde ultimamente? Passa muito tempo como esse colega? 

Homem: Sim. 

Eu: Isso não está me cheirando bem, mas a grana é sua. Podemos tentar encontrá-la.Passe todos os detalhes para aquela velha ali.  

  — Excelente, não acha? — perguntou Helen. — Especialmente a fala sobre ali não ser um bordel. E sobre a grana ser dele também. Pura adrenalina, não acha? 

— Sim, está muito bom. 

— Vou escrever mais um pouco amanhã, talvez possamos até encenar esse pedaço.Muito bem, agora é melhor eu me preparar para ir trabalhar. 

Às dez da noite, mais ou menos, ela reapareceu na minha porta; vinha no estilo clássico de quem vai vigiar alguém (roupa escura, colada no corpo, em um tecido que parecia ser impermeável, mas não era). 

  — Você precisa de ar fresco — afirmou ela. 

— Já peguei muito ar fresco de manhã cedo. — Nem pensar em sair! Não ia ficar sentada atrás de um arbusto durante doze horas esperando ela tirar fotos de algum adúltero saindo do apartamento da amante.  

  — Mas eu quero que você vá comigo. 

Embora eu e Helen fôssemos completamente diferentes, éramos muito ligadas, talvez pelo fato de sermos as mais jovens. Seja qual for a razão, Helen me trata como uma extensão dela mesma, a parte que levanta para pegar copos d'água para ela no meio da noite. Sou a coleguinha de brincadeiras dela/ seu brinquedo/ sua escrava/ sua melhor amiga e, nem precisa acrescentar, tudo que eu tenho passa a ser automaticamente dela. 

— Não posso ir — expliquei. — Estou toda quebrada. 

— Papo-furado! — exclamou ela. — Furadíssimo!  

  Não é que ela tentasse ser cruel, nada disso. É que minha família não curte muito esse lance de sentimentalismo exagerado. Eles acham que isso só serve para deixar a pessoa mais chateada do que já está. Pentelhar o outro de forma implacável e sem concessões, esse é o modus operandi lá de casa.   

  Mamãe apareceu no quarto, e Helen apontou para mim, me acusando: 

— Mamãe, ela não quer ir comigo, vai ter que ser a senhora.

 — Não posso ir. — Com ar dramático, ela lançou os olhos rapidamente na minha direção como se eu fosse uma doente mental... E cega. — É melhor eu ficar aqui com ela. 

— Dwg-dong! Se liguem, qual é? — reclamou Helen. — Vou passar a noite toda sentada ao lado de uma sebe úmida e nenhuma das duas dá a mínima.   

  — É claro que nos preocupamos. — Mamãe fez surgiu algo do bolso e entregou a Helen. — Pastilhas de vitamina C. Isso vai acabar com suas dores de garganta. 

— Não. — Helen fez uma careta, recuou um pouco e isso confirmou uma coisa da qual eu sempre suspeitara: ela, na verdade, curtia as dores de garganta, porque isso era um pretexto para ela ficar na cama o dia todo tomando sorvete e sendo rabugenta com todo mundo. 

— Tome a vitamina C! 

— Não.  

— Tome a vitamina C! 

— Não. 

— TOME ESSA BOSTA DE VITAMINA C! 

— Caraça, também não é preciso ter um filho pela boca! Tá legal, eu tomo, mas não vai adiantar nada.

  Depois de ela sair de casa batendo a porta, mamãe pegou a listinha escrita em um pedaço de papel e me administrou a última dose de medicamentos do dia. 

  — Boa-noite, querida — disse ela. — Durma bem. — Com um ar de ansiedade,acrescentou: — Não gosto de largar você aqui embaixo sozinha, com todo mundo lá em cima. 

— Tá tudo bem, mãe. Com esse joelho estourado é muito mais prático eu ficar aqui embaixo. 

— Eu me culpo por isso — desabafou, com súbita emoção. Ela se culpava? Que papo era esse?   

 — Se pelo menos morássemos em uma casa pequena, de um andar só, poderíamos ficar todos juntos. Nós bem que fomos ver uma desse tipo para comprar, seu pai e eu,antes de vocês todas nascerem. Era uma casinha só com um andar, mas ficava longe do trabalho dele. E tinha um cheiro esquisito. Mas agora eu me arrependo. 

Essa foi a segunda vez que eu via mamãe preocupada naquele dia. Isso era inédito.Geralmente ela era tão dura quanto os bifes que costumava preparar, antes de a gente implorar para que parasse.   

  — Mas, mãe, eu estou ótima. Não fique desse jeito, não se sinta culpada. 

— Sou mãe, meu papel é me sentir culpada. — Com mais um transbordar de ansiedade, perguntou: — Você não está tendo pesadelos? 

— Não, nadica de pesadelos, mamãe. Não tenho sonhos de nenhum tipo. — Deve ser por causa dos remédios. 

Ela franziu as sobrancelhas. 

— Isso não está certo — afirmou. — Você devia estar tendo pesadelos. 

— Vou tentar — prometi. 

— Boa menina! — Ela me beijou a testa e apagou a luz. — Você sempre foi uma boa menina — disse, em voz alta, parada em frente à porta. — Um pouco esquisita, às vezes,mas uma boa menina.  

Tem Alguém Aí? - Família Walsh Vol 4Onde histórias criam vida. Descubra agora