Capítulo 1

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Trecho de Viagem sem Volta, de Dorothea K. Lincoln:

Mais ou menos uma semana depois que meu marido morreu, eu estava no solário de nossa casa, folheando a National Enquirer — a única publicação na qual eu conseguia me concentrar —, quando, pela janela aberta, entrou uma borboleta. Ela era incorrigivelmente linda, com intrincados padrões em tons de vermelho, azul e branco. Enquanto eu acompanhava o seu voo, maravilhada, ela, indiferente, circulava alegremente pela sala, ensaiando um pouso sobre o sistema de som, em seguida sobre um vasinho de planta — como se para me lembrar de que eu devia regá-la! —, para então seguir rumo à velha poltrona do meu marido. Depois, voou até o meu exemplar da National Enquirer e pousou pesadamente sobre ele, como se dissesse, com ar desaprovador: "Dorothea, Dorothea!" (O mais interessante é que meu falecido marido não permitia a leitura dessa revista em nossa casa, por achá-la sensacionalista.)

A novela As the World Turns estava passando na tevê, mas a borboleta pairou sobre o controle  remoto. Parecia querer me dizer algo — será que ela queria que eu trocasse de canal? "Muito bem, amiguinha disselhe eu. "Podemos tentar."

Passei por vários canais aleatoriamente e, ao chegar no Fox Sports, a linda criatura pousou na minha mão, como se me pedisse gentilmente para parar. Então foi para meu ombro e assistiu ao US Open de golfe por meia hora; a sala se encheu de uma paz profunda. Quando Ernie Eis acertou um buraco em três tacadas a borboleta se agitou de leve, voou até a janela, pousou por mais alguns instantes sobre o peitoril e então, como se quisesse dizer adeus, voou para a imensidão azul. Não tive dúvida de que aquela fora uma visita do meu falecido marido. Ele tentava me dizer que continuava comigo e sempre estaria ao meu lado. Várias pessoas enlutadas relataram visitas semelhantes.


Coloquei o livro sobre a mesa, me ajeitei na poltrona, olhei em torno da sala e pensei: Onde está minha borboleta?

Já haviam se passado quatro ou cinco semanas desde minha conversa naquela manha bem cedo com Rachel no Jenni's e pouca coisa mudara. Eu continuava trabalhando muitas horas além do expediente, mas produzia pouca coisa que prestasse. Continuava dormindo no sofá, e Aidan continuava morto.

Aos poucos eu criei uma pequena rotina diária: acordava assim que amanhecia, ligava para Aidan no celular, ia para o trabalho por pelo menos dez horas, voltava para casa, ligava novamente para Aidan, construía fantasias elaboradas nas quais ele não havia morrido, chorava por algumas chorava por algumas horas, cochilava no sofá, acordava ao amanhecer e começava tudo novamente.

Chorar se transformara em um grande conforto, mas era difícil conseguir tempo disponível para isso, porque meu rosto inchava e demorava um tempão para voltar ao normal. Não era seguro chorar de manhã porque minha aparência ficava medonha no trabalho. Na hora do almoço também não, pelo mesmo motivo. Mas as noites eram ótimas. Eu ansiava pela chegada da noite.

Eu me arrastava ao longo de cada dia e a única coisa que me mantinha viva era a esperança de que o seguinte seria mais fácil. Só que não era. Todos os dias eram exatamente iguais. Inacreditavelmente horríveis. Era como se eu tivesse entrado por uma porta errada da minha vida e estivesse em um mundo onde tudo era idêntico, exceto por uma enorme diferença.

Tinha esperança de que voltar a Nova York, levar uma vida normal, curtir meu trabalho e meus amigos fizesse o pesadelo se dispersar. Nada disso aconteceu. O trabalho e os amigos simplesmente passaram a fazer parte do pesadelo.

Naquela manhã, como em todas as manhas, eu tinha acordado em um horário absurdamente cedo. Sempre se passavam alguns décimos de segundo nos quais eu me perguntava o que havia de tão terrível. Então lembrava.

Tornei a me deitar, com uma dor persistente nos ossos, como imagino que deva ser a dor de reumatismo ou de artrite. Quando essas dores começaram, imaginei que talvez tivesse contraído algum vírus ou estivesse sofrendo algum efeito colateral do acidente. Meu médico, porém, disse que eu estava somatizando a dor do luto. Ele me garantiu que isso era "normal", o que me deixou um pouco chocada. Eu sabia que a dor emocional era esperada, mas a dor física era novidade.

Tem Alguém Aí? - Família Walsh Vol 4Onde histórias criam vida. Descubra agora