Sou eu quem o beija primeiro.
É o pôr-do-sol, hora de encerrar o expediente e nos encaminharmos para o refeitório. Exceto que hoje não vou para o refeitório e, sim, me preparar para o ato mais arriscado da minha vida.
Raah responde à altura, puxando-me pela nuca, seus lábios incrivelmente macios pressionados contra os meus, movimentado-se devagar, com a calma dominante de quem enxerga no gesto um início.
Mal sabe ele que não há um princípio entre nós.
É apenas o fim.
Tenho lágrimas acumuladas sob as pálpebras fechadas, enquanto tento de alguma forma prolongar o momento, adiar o inevitável. Beijá-lo como se isso fosse capaz de transferir pedaços de alma. Não é minha escolha. Não gostaria de perdê-lo. Jamais.
Mas a partir desta madrugada, independente do resultado, quer eu consiga o que planejo ou não, serei uma pária em Tibbutz. Foragida.
Sequestrarei a irmã dele.
Raah me odiará para sempre.
E nunca mais ele, nem ninguém de seu povo, me verá algum dia novamente.
* * *
Nunca imaginei que fosse possível sentir o ritmo do próprio sangue dentro das veias ou que o coração pudesse bater tão forte ao ponto de causar dor. É o tipo de conhecimento que só se adquire quando se experimenta pessoalmente.
E é a sensação que define minha vida neste instante.
Já faz meia hora que deixei a casa dos Kravz na surdina, no meio da noite, depois de ter me livrado de toda aquela parafernália emplumada. Desde então, corro tanto quanto posso. Sinto os tendões das pernas repuxarem, queimarem, e ainda assim não consigo me livrar da sensação de que qualquer um deles pode me alcançar a cada minuto, a cada passada. Numa sociedade justa, eram eles que deveriam estar com medo e não eu. Mas, estou sozinha agora. Pela primeira vez na vida, realmente, totalmente, indubitavelmente, sozinha. Meus pais não estão aqui para me proteger. Muito menos Raah, meu alento na chegada a esse país.
Mesmo que meu olfato não tenha detectado o odor que recende daqueles corpos — o qual, sei que eu ainda poderia sentir a algumas centenas de metros de distância —, sinto-me mais insegura do que em qualquer outro momento da minha vida. Considerando aqueles em que ela esteve em risco absoluto. Porque não é apenas a minha vida que tenho nas mãos agora. E tudo o que eu não conseguiria fazer é seguir com ela quando tenho consciência de que Tink vai perder a sua. Retomar a rotina como se uma fatalidade a tivesse levado e não houvesse nada que eu pudesse fazer para impedir. Não quando sei que nada disso aconteceu por acidente. Menos ainda quando tenho a informação de que ela ainda está aqui. Tink está viva e a cada momento que passa eu tenho mais certeza de que, não importa quais forem os argumentos, ou quanto eu já tenha desejado ser aceita em Tibbutz, não me importam os riscos, morte ou exílio, nada disso faz diferença.
Deixar que façam isso com ela nunca vai ser opção. Não para mim. Não depois de tudo.
O terreno pedregoso fica cada vez mais íngreme, a subida mais pesarosa, conforme me aproximo do que sei ser meu destino. Os pilares que cobrem as paredes se erguem diante dos meus olhos até que toda a superfície do Centro Hospitalar esteja à mostra. Mas, ainda assim estou apavorada. O que vai acontecer se eu for flagrada? Não quero dar vazão ao caos de escuridão e medo que me ameaçam, mas me parece quase inevitável, à medida que desacelero e me aproximo.
E agora? Claramente não posso simplesmente entrar pela porta da frente. Por trás de um arbusto, varro o ambiente que consigo alcançar com os olhos: não detecto uma alma viva. No entanto, sei que há alguma espécie de vigilância, tem de haver. Raah não agiria de forma tão paranóica de vez em quando, se não houvesse. Rastejo, buscando o esconderijo da sombras mais escuras, nos pontos onde a luz da lua não atinge, dando a volta ao redor do edifício. Perfeito. Há uma janela aberta na lateral do prédio, bem no alto. É, talvez, com sorte e expelindo o máximo de ar do meu corpo, grande apenas o suficiente para que eu deslize por ela. Tomo alguns instantes para me concentrar, inspirar, expirar fundo, dar um impulso, uma breve corrida e... no momento exato em que vou saltar para agarrar à borda da janela, ouço vozes muito próximas. Com uma freada brusca, me recolho de volta ao esconderijo.
Duas pessoas vestidas de azul saem pela porta dianteira, conversando e rindo alto.
Preciso de vários minutos para recuperar meu fôlego e acalmar meu coração ao ponto de conseguir andar novamente, sem que meus joelhos cedam por tremerem tanto.
A próxima tentativa ocorre sem incidentes. Com um movimento, salto, agarro-me à borda e já ergo meu corpo na tração dos meus braços. Todos aqueles anos de treinamento vieram bem a calhar. Meu tronco desliza com facilidade pela fenda. É só a região dos quadris que apresenta dificuldade. Empurro a parede que me prende com força, tentando simultaneamente me sacudir para facilitar o desenlace. Sem sucesso. Exalo, frustrada, após alguns minutos de esforço.
Que situação.
As manchetes imaginárias transcorrem pela minha cabeça: ela queria ser uma heroína, mas, ao invés disso, foi pega graças à sua maldita e enorme bunda.
Vozes novamente se aproximam. Dessa vez, uma masculina e uma feminina. Seguro a respiração. Só tenho a altura da janela e a escuridão como proteção. Duas pessoas vestidas de azul passam bem debaixo de mim, sem detectar minha presença.
Suspiro aliviada quando vão embora e volto a lutar contra as leis da física.
Dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar, dizem. É hora de prová-los errados, penso com mais um grunhido de esforço.
Estou nessa luta, considerando muito remotamente a possibilidade de desistir e no que isso acarretaria, quando, do nada, surge mais um funcionário no uniforme azul-acinzentando, andando às pressas pelo corredor.
É tarde demais.
Minha tentativa pífia de segurar a respiração para me tornar incógnita é a escolha mais ridícula a se fazer, considerando que é iniciada a partir de uma tomada de fôlego completamente audível e desesperada.
O homem olha diretamente para mim.
NOTA DA NOEMI:
Oi, pessoal. Estou com dificuldades para postar, mas contanto que vocês continuem acompanhando, vou tentar ao máximo possível publicar um capítulo novo por dia. Amo vocês <3
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HUMANO [COMPLETO]
Science Fiction#4 em ficção-científica em 25/04/2018 Que preço você está disposto a pagar para ser aceito? ESCRITO EM PARCERIA COM Camila-Antunes Imagine uma sociedade perfeita. Não há desigualdade, fome ou violência. Um lugar onde rege paz, harmonia e respeito. ...