A Rua de Trás (Parte IV) - Eles Estão Entre Nós

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I

30 de Outubro de 2017, São Tadeu

Letícia, Zumbi e seu pai entraram na casa marcada pelo perigo enquanto o vizinho removia a pichação. Com certeza era uma relação admirável e sugestiva. O ambiente era aconchegante e milimetricamente familiar; nada faltava ali. Todos foram para a cozinha, onde os tons avermelhados do fim de tarde refletiam nos fios dourados da mãe do rapaz, uma dona de casa exemplar.

Mesa farta, regalias e superestimação emanavam naquele lanche. Letícia tornou-se o centro das atenções da conversa. Isso era destoante e um pouco incomodo; nunca experimentara essa sensação de valor. Sua mãe não estava mais entre os vivos para prover o afeto necessário, e seu pai, preocupado com o bem-estar da filha, trabalhava incansavelmente para lhe dar todo o conforto merecido. O que ele infelizmente não compreendia era que todos aqueles presentes e mimos não substituíam seu amor.

Letícia sempre chamou atenção por seu foco peculiar. Conseguia fazer várias coisas simultaneamente sem se perder e isso lhe ajudou a perceber o momento em que a mãe de Thiago pediu um favor ao jovem, que saiu em seguida. Os minutos se passaram e ele não retornou à cozinha:

— Detesto ser intrometida, mas cadê o Zum...o Thiago?

— Não se preocupe, meu bem. Ele foi buscar mel com o vizinho apicultor. Minha cabeça não é mais tão rápida como antigamente. Imagine que triste seria comer essas panquecas sem um pouco de mel!!!

— Um apicultor? Bacana. Vocês parecem ter de tudo por aqui.

— É como sempre digo: somos uma grande família. Ajudamos uns aos outros e nunca há nada a temer — a garota sentiu um arrepio percorrer espinha abaixo rápido como um trem. Havia algo muito errado naquele lugar.

— É.... bom... e-eu... olha só! O sol está se pondo! Logo será noite; acho melhor ir para ca-casa antes que isso aconteça!!!

— Como assim, linda garota? Não vai nem experimentar minhas panquecas? Nem se despedir de seu namorado?

— Não! Nós não somos... namorados...  e-eu realmente preciso ir. Mi-mi-mil desculpas, tia! Não queria fazer esta desfeita. A-a-até mais!!!

Letícia aproveitou que a porta da casa estava aberta para sair dali quase que correndo. Suas pernas doíam com a tensão que colocava em seus passos rápidos e longos na tentativa de se afastar cada vez mais daquela perfeição mórbida. Panquecas com mel? Que porra é essa! Aquilo era um filme de Hollywood ou algo do tipo?! Se fosse, provavelmente era um terror (e da pior categoria). O pai e a mãe de Zumbi fitavam a menina através da janela da cozinha em um silêncio fúnebre até que se filho interrompeu o ato ao chegar com um vidro de mel:

— Ué? Cadê minha mina? — perguntou com seu típico rosto inexpressivo.

— A garota fugiu, e o gordinho idiota está com aquela maldita piranha da casa oito, que já deve ter lhe ajudado a sair do condomínio. Ligue para o recruta; a namoradinha não pode escapar!

II

— Seja breve, filha, estou ocupado!

— Papai! Me ajuda! E-eles estão atrás de mim! Vão me pegar!!!

— O que houve, Letícia? Onde você está?

— No Golden Hour. No maldito Golden Hour! Me perdoe, sei que nunca devia ter vindo aqui! Me ajuda!

— Aaah! — o homem soltou um longo suspiro. — Menos mal! Pensei que estivesse realmente em apuros. O lugar é seguro, filha. Não há nada a temer; as pessoas são como uma grande família. Toque a campainha de alguma casa, com certeza irão te ajudar! Agora preciso desligar. Um beijo, filha!

Desligou a ligação e olhou para trás: nada. Procurou ao redor: nem sinal deles. Estava ofegante e sentia uma dor na altura do estômago. Já sentira aquilo antes quando se esforçara demais. Era uma dor oca, quase como uma cratera em seu corpo: nada além do nada. O mundo ao redor não tinha a firmeza necessária e cambaleava enquanto a garota tentava sentar-se na calçada mais próxima. Uma voz familiar invadiu seu pesadelo lúcido:

— Lêh, levanta! Precisamos sair daqui antes que algo aconteça.

— Jorge? O que faz aqui? É... perigoso.

— Vi que você tinha sumido da escola e o Zumbi também... sei que você não faria isso se o Oto não estivesse aqui. Vim o mais rápido que pude, mas já era tarde: ele havia fugido.

— O Otávio fugiu? Mas... isso não é possível. Ele não foge dos medos dele assim.

— Ter visto algo muito perturbador e fugido é a melhor hipótese, no momento. Isso me parece mais uma armadilha.

— Eu não acredito nisso! Não pode... ser... — sua fala foi interrompida por uma mensagem de texto de Otávio onde ele apenas pedia desculpas.

— Acredita agora? — Jorge murmurou. — Temos que ser rápidos se quisermos sair em segurança. O portão principal não é uma opção, então o esgoto é a maneira mais segura.

— Caralho, Jorge! Isso não é hora para brincar de Stephen King!

— Ótimo. Me traga uma alternativa melhor e falhe miseravelmente...

Um silêncio se instalou. A verdade era que não havia outra saída para os dois a não ser as galerias cheias de restos fecais e urina dos moradores de São Tadeu. Naturalmente, os amigos se encaminharam para aquela que era a última esperança de ambos.

III

30 de Outubro de 2018, São Tadeu

Os quatro jovens andavam entre as trevas das galerias de esgoto naquele fim de tarde da véspera de Halloween. Zezinho corria na água suja usando suas galochas e fazendo um barulho irritante. Maria riu incontrolavelmente assim que a cena aconteceu: o garoto pisou em algo escorregadio — provavelmente um pedaço de fezes — e caiu sentado naquela água podre. Era o doce sabor da vingança. Lá estava Jorge a observá-los: com um sorriso nos lábios, respiração ofegante, punhos cerrados e uma postura ereta que lhe fazia parecer mais alto que de costume.

— Idiotas! Deviam ser mais cautelosos, estamos fugindo e não brincando — Letícia disse com olhos fixos no menino Zé.

— Desculpa, mamãezinha — o garoto revidou fazendo um gesto de beijo.

— Por que não conta uma daquelas suas histórias, Jorge? O ambiente ajuda! — Maria sugeriu.

— Não há necessidade. Histórias se repetem, a vida é cíclica. Seria inútil tentar assustar vocês. Nem meu relato conseguiu isso...

— Na verdade, eu mijei nas calças naquele dia — o outro menino respondeu arrancando mais risadas de Maria. — Aliás, por que não termina de contar aquela história, cara? Seria legal.

— Ela não tem um desfecho bom...

— Aaah, qual é! Você e seus pais fugiram de seres reptilianos no meio da noite e estão vivos! O que seria bom na sua concepção?! — Maria arqueou sua sobrancelha como de costume.

— Na verdade, não conseguimos fugir — Jorge e Letícia sorriram entre seus olhos amarelos.


[MENSAGEM DA FAMÍLIA GOLDEN HOUR]

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São Tadeu (Vol. I) Onde histórias criam vida. Descubra agora