A Menina dos Olhos [INTERLÚDIO]

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Da mesa da recepção, pôde assistir à chegada da jovem vestida de preto desde o salto alto até o batom e o desnecessário óculos de sol. Era Carolina.

— Boa tarde! Vim devolver isso. — Tirou de sua bolsa um exemplar do Livro dos Espíritos de Allan Kardec.

A mulher sentada à mesa lhe olhou com ar de indiferença, se inclinou para o lado e pegou o grande livro onde registravam todos os empréstimos da biblioteca. Passou por várias páginas até chegar na data desejada.

— Espero que não cobre a multa pelos nove meses de atraso... — A outra finalmente parou o que fazia e olhou em seus olhos.

— Estava no seu nome, não no dela.

— Por favor, Heloísa, não se faça de tonta! Você mais que ninguém sabe o quanto ela era curiosa e para não ser descoberta usava o meu nome aqui. Não vou discutir isso com você, não tenho como pagar nove meses de multa e você sabe que essa é uma dívida morta.

— Eu sei... eu conhecia ela muito bem, assim como você também conhecia...

— E?...

— Você não me engana, garota! Eu nunca esperei nada bom de você! Se dizia amiga da menina, mas nunca teve nenhuma atitude para protegê-la dos olhares curiosos que a cercavam aqui toda semana. Você negligenciou o perigo constante ao qual ela era exposta. Aquele rapaz... eu tenho certeza que nunca teve boas intenções, e você sabia disso! Poderia ter evitado tudo o que aconteceu!

— Minha melhor amiga ficou desaparecida por nove meses até que finalmente é encontrada, morta, eu acabo de voltar do seu enterro e escuto uma coisa dessas. Você é um monstro, Heloísa! Você é doente! Tudo o que eu quero é sair daqui, mas não vou fazer isso sem que você saiba que é um monstro, então antes de ir eu faço só uma pergunta. Considerando que os seus delírios fossem a verdade e alguém realmente pudesse impedir essa tragédia, por que você não fez isso? Passar bem!

Ela saiu em direção a um carro que lhe aguardava.

***

— Boa tarde! Posso ajudar? — o homem da guarita falou sem esboçar muito entusiasmo.

— Avise ao Gregório que a amiga do sobrinho dele está aqui — a jovem dentro do veículo falou sem tirar seus óculos escuros.

O guarda autorizou a entrada e o carro prosseguiu pelas ruas perfeitamente pavimentadas que só existiam em São Tadeu se você cruzasse o letreiro "Bem-vindo ao Golden Hour".

Estacionaram em frente à casa. Enquanto o motorista aguardava do lado de fora, a moça se aproximou. A campainha era de fácil acesso logo à sua esquerda, mas algo em seu íntimo dizia que aquela porta aberta não era apenas um descuido e sim uma oportunidade. Entrou sem pedir permissão.

Olhou ao redor e a decoração minimalista faria a sala parecer quase vazia se não fosse pelo berço próximo à parede oposta à entrada. Ela e o rapaz conversaram somente o necessário nas poucas vezes em que se falaram; foi o suficiente para confirmar os relatos da falecida amiga: ele possuía algo a mais. Aquele não era o cômodo mais adequado para receber um recém-nascido, mas com certeza era o lugar ideal para chamar a atenção de uma consciência pesada. Ir até a criança seria irresistível, e ele sabia disso. Quando se aproximou do berço e viu aquele pequeno ser, um tsunami de emoções tomou seu corpo. A água quase transbordou em lágrimas e era fria como ela foi quando aceitou não revelar o que sabia em troca de uma recompensa. Mas lá no fundo daquele oceano algo quente revirava em suas entranhas. Era como um monstro jamais descoberto pela humanidade, mas que com a onda gigante chegaria à superfície para provocar a destruição. Era sua culpa causando-lhe ânsia de vômito. A criança se inclinou em sua direção. Inocência emanava do rosto e olhos risonhos, que mesmo cintilando em tons um pouco diferentes em cada íris — vermelho e amarelo —, possuíam um fundo em comum; o castanho tempestuoso. Em seu íntimo, um pensamento ecoou como o disparo de um tiro no silêncio da noite e, de repente, se materializou:

— Ela tem os olhos da mãe. — Virou-se assustada. O rapaz estava parado em frente à lareira, com o cabelo preso em um meio coque. — Não acha? — Ele virou de frente para ela. Segurava uma mala.

— Não sabia que era uma mocinha...

— Pois é... a minha menina dos olhos, todo mundo aqui a ama!

O sorriso que ele esboçou em seus lábios carregava uma alegria que seria admirável se ela não soubesse a história que deu vida àquela criança. E de fato não sabia, pelo menos não todos os detalhes, mas o que sabia era suficiente para não se alegrar junto e foi por isso que ele a chamou.

— Aqui está sua parte, tudo como o combinado. — Entregou-lhe uma mala. Enquanto Carolina conferia rapidamente a quantia, o bebê começou a chorar. — Agora... se me permite, peço gentilmente que se retire. Está na hora do almoço da pequena Regina.

— Até nunca mais?

— Até... nunca mais!...

São Tadeu (Vol. I) Onde histórias criam vida. Descubra agora