A Rua de Trás (Parte II) - O Ritual

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I

Otávio dormia e seu corpo estava pesado. Por mais que o cansaço fosse extremo, a fuga do carro assassino na noite passada fora tão frenética que não permitia descanso a sua consciência. Estava lúcido como nunca antes, mas tudo era escuro e sem saída.

Seu corpo ardia em febre, mas não conseguia acordar para ir beber água ou tomar um banho gelado. Aquela sensação de frieza veio na hora certa. Era dominadora, reconfortante e até um pouco estranha, como se fosse viva. Com sua mente finalmente relaxada, sentiu a lucidez evaporar lentamente em delírios típicos de quem está pegando no sono.

Era como se fossem pequenas patas andando sobre si, rastejando, causando cócegas, fazendo atrito entre sua pele e as escamas. Sua consciência tomou forma outra vez, dando impulso para acordar e ver com os próprios olhos: vários lagartos passeando em sua cama com naturalidade e calmaria.

— Oto! Oto! Está tudo bem, querido! — sua mãe tentou lhe acalmar.

—Os répteis! São eles... eles... 
estão entre... nós!

—Não diga besteira! Foi só um sonho.

—Um péssimo sonho... — completou levantando da cama.

II

O sinal do recreio soou e Otávio foi direto para a "mãe natureza", uma árvore assim apelidada carinhosamente por ele e seus amigos. Letícia e Jorge já estavam lá e conversavam sobre o que aconteceu na noite passada. O gordo não foi muito sutil e chegou expondo suas descobertas de forma abrupta:

— Olá pessoal! Passei a manhã investigando o lugar e fiz algumas descobertas interessantes.

— Você não é normal, garoto! Fala logo o que você encontrou — disse Letícia.

— O condomínio é recente, existe apenas há dez anos. Foi construído por uma multinacional americana muito poderosa. Antes disso, era tudo mato, mas não um mato qualquer. Vocês sabem que São Tadeu teve uma queda de meteorito, mas pouca gente sabe que foi exatamente no solo do Golden Hour onde a rocha colidiu. O mato de lá sempre foi... estranho...

— Não me diga que você andou fazendo algo com aquele "mato" — Letícia não conteve o riso com a piada de Jorge.

— Senso de humor admirável — Oto revirou os olhos. — Mas questão é que não é de hoje que aquele lugar tem eventos estranhos. Achei esta foto no Google Maps. É do ano passado...

— Bizarro! Parecem aquelas coisas do Discovery Channel — disse Jorge ao ver a imagem de satélite que mostrava enormes desenhos circulares nas áreas de vegetação alta do condomínio.

— Agora vocês percebem? Primeiro o meteorito, depois a vegetação, daí a foto do satélite e agora as luzes. Luzes essas que são como as da história que você nos contou sobre os répteis. Eu pesquisei algumas coisas e achei isso. Se parece com algo que você já tenha visto? — Oto mostrou a foto para o amigo.

— Ei, ei, ei! Calma aí! Isso é um reptiliano? — Letícia deu passos para trás.

— Sim! Mas eu nunca vi um pessoalmente — falou Jorge, tirando um pouco do ânimo do amigo.

— Agora que os senhores foram convencidos de tudo o que pode haver naquele lugar, tracemos os planos para entrar na fortaleza.

— Você perdeu seu juízo fugindo daquele carro ontem... quer que a gente invada uma propriedade privada para brincar de caça a ETs? — respondeu Letícia.

—Temos que fazer isso! Nossa cidade pode estar em perigo e só nós sabemos de tudo. Nenhum adulto vai acreditar se contarmos.

— Porque isso é insano, Otávio! Aquele lugar é perigoso e você sabe disso. Não devíamos brincar com o desconhecido. Eu tô fora! — Jorge deixou suas palavras como um rastro de poeira enquanto se afastava dali.

— Você vai me ajudar, não é?! Já sei como entrar lá, mas preciso de sua ajuda, Letícia... — os dois trocaram olhares de espanto.

III

Na tarde do dia seguinte, Jorge ligou para Letícia. Eles se encontraram na praça onde tudo ocorreu para conversar sobre o que Otávio queria fazer. A garota disse a respeito do plano absurdo que ele criou para entrar no condomínio: ela teria que paquerar o Zumbi, um brutamontes lesado e morador do lugar, e ir para a casa dele com os garotos. Apesar da repulsa, Letícia estava disposta a fazer aquilo por algum motivo que Jorge desconhecia.

Vendo a barbaridade da situação, ele decidiu mostrar sua descoberta para a amiga na tentativa de convencê-la do real perigo que o Golden Hour representava. Havia um morro chamado "Mirante" nas proximidades do bairro. Era de fácil acesso e dava uma visão ampla das ruas, até mesmo as do condomínio. Os dois foram até lá para que ela visse com os próprios olhos.

Depois de meia hora de caminhada e subida entre o mato, pararam em um ponto onde as árvores permitiam ver uma das diversas áreas de lazer do Golden Hour. A ruiva não precisou de mais que cinco segundos para perceber os primeiros sinais daquela reunião macabra que fora descoberta pelas chamas altas de uma fogueira.

Pegou o binóculo oferecido pelo amigo e pousou seus olhos sobre as lentes do objeto. Os segundos pareciam passar lentamente enquanto sua visão se aproximava da verdade. Naquele momento, ela pode ver uma espécie de ritual. Cinco pessoas ao redor de uma fogueira dispostas em pontos específicos formando um pentagrama invertido que apontava diretamente para si.

O binóculo caiu de suas mãos enquanto voltou-se para Jorge com os olhos arregalados.

— Tem certeza de que viu tudo? — o rapaz perguntou, induzido que olhasse mais uma vez.

E assim ela fez. Seus olhos se aproximavam lentamente do rito e puderam captar algo que não vira antes: as caudas daqueles cinco homens. Eram longas, verdes e escamosas, assim como suas mãos, agora visíveis após erguerem os braços. A adoração pareceu estagnada segundos antes de todos eles se virarem em direção ao seu olhar. Letícia pode encarar seus olhos amarelos com pupilas finas e verticais a lhe encarar.

IV

Otávio estava no escritório de seu pai. As pilhas de papéis não condiziam com o baixo cargo que ele tinha na empresa responsável pelo saneamento de São Tadeu. Felizmente ainda eram úteis o suficiente para entregar ao seu filho um presente dos deuses: o mapa das galerias de esgoto da cidade. Oto conhecia seus amigos; eram fracos, impressionáveis e não iriam ajudá-lo a entrar nesse mistério. Era hora de fazer as coisas por si mesmo.


[MENSAGEM DA FAMÍLIA GOLDEN HOUR]

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São Tadeu (Vol. I) Onde histórias criam vida. Descubra agora