She's A Demon

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— Clemente! Você por aqui? — A mulher abriu a porta, mas permaneceu do lado de dentro.

— Boa noite, patroa! Eu vim falar com o patrão, por gentileza. — Tirou o chapéu para cumprimentá-la.

— Gregório está jantando agora. Por que você e a sua menina não entram para esperar? — A senhora Sales era uma mulher rápida; justamente por isso o homem entendeu que fazê-la saber da existência da garota era primordial para se livrar daquele problema.

— Tem pressa não, madame! Eu espero ele aqui. É assunto de cabrunco véio que eu vim tratar.

— Luci, mulher, quem é que tá... — Pela primeira vez o rosto de Gregório mostrou alguma expressividade: surpresa.

— Seja mais cauteloso da próxima vez, Clemente; Regina está visivelmente dopada. Espero que tenha um motivo muito bom para vir até aqui com ela nestas circunstâncias. Entre e converse com meu marido enquanto preparo um café para vocês. — A mulher voltou para dentro

— E-ela sabe? — Coçou a cabeça.

— Apenas entre, meu amigo... e traga a menina.

Ele foi até o carro buscá-la e entrou na casa carregando-a no colo. Com a permissão do patrão, deixou a garota deitada sobre o luxuoso sofá-cama creme e foi em direção à cozinha, onde o casal lhe aguardava. Nunca havia entrado ali antes, logo foi impossível não reparar em como tudo era refinado, desde os detalhes de gesso no teto até as paredes obsessivamente brancas e o piso de madeira mais brilhante que sua careca sob o sol do meio dia. Sentou-se à mesa com pouca esperança naquela conversa. Toda sua estratégia se baseava em ameaçar a estabilidade familiar do homem à sua frente, o que parecia impossível após descobrir que a senhora Sales sabia de tudo.

— Quero que conte exatamente o que aconteceu.

— Tudo começou de manhã bem cedo...

12 HORAS ANTES

Mais um dia nascia em São Tadeu. Clemente não teve dificuldade em acordar naquela manhã; na verdade, sequer havia dormido. Logo adiante, encolhida contra a parede, estava o motivo da sua insônia — a menina. Cada vez menos humana. Sua mente estava presa em um labirinto extremamente complexo de desgraças que poderiam acontecer a ela. Dado o histórico das outras crianças que estiveram no lugar, poderia afirmar com toda certeza: ali era o inferno dos inocentes, onde o Diabo era implacável. Esse foi o único motivo concreto que o levou a tomar a atitude mais arriscada de sua vida. Os primeiros raios de sol quebravam a escuridão dentro da casa quando ele se levantou e foi até ela.

— Vem comigo, quero mostrar um negócio! — Longos segundos se passaram até ela finalmente lhe estender sua mão frígida e franzina.

Formalmente tudo o que se encontrava dentro dos muros do Golden Hour pertencia ao condomínio, inclusive a fazenda do apicultor. Na prática ali era só uma área rural com uma única rua dando acesso ao mundo exterior através de um portão antigo; ninguém além dele transitava pelo local — ao menos era o que achava. Do lado de fora havia poucas casas povoadas por moradores de hábitos bastante tradicionais, que raramente perambulavam pelas ruas àquela hora. O lugar perfeito para um passeio.

De início, ficou parada. Seus olhos gigantes analisavam tudo ao redor; era um mundo novo. O aroma verde que os cercava logo chamou sua atenção, levando-a para perto dos capins. Ele se apoio nas grades do portão para vê-la brincar com as flores miúdas que catava no mato e com as borboletas que chegaram para lhe dar boas-vindas.

Assim como o Sol, um sorriso despontava lentamente sobre o horizonte carrancudo de sua face. Era um alívio vê-la sentir a vida ao menos por um momento antes do que a esperava — não sabia o que era, só temia. Girava, pulava e gesticulava, por vezes parecia falar com alguém. Seus cabelos reluziam sob o alvorecer, até seus olhos, outrora estranhamente amarelados, ganharam um colorido diferente sob a nova perspectiva: cor de mel. Incrivelmente o cenário bucólico conseguia ficar mais deslumbrante ensanguentado pela excepcional iluminação matinal, um início que mais parecia o fim de um longo dia. Aos poucos, o vermelho era tirado do reflexo das superfícies como uma mancha é exterminada de uma roupa. Exceto pelas borboletas.

São Tadeu (Vol. I) Onde histórias criam vida. Descubra agora