dois - parte um

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Capítulo 2 (Parte 1)

Blackburn após o toque de recolher é parecido com um filme de terror.

Mais vivo, como se respirasse. Mas isso é assustador: toda a escuridão e o silêncio. Ouvem-se sussurros macabros, palavras que não consigo entender. Os corredores estão vazios e escuros. Todas as portas e janelas estão fechadas, como se escondessem algo por detrás delas.

O guarda puxa-me com mais força quando passamos pela porta de Liam. Não sei porquê, sem dar conta parei para olhar para ela, para a entrada do que tem sido o meu paraíso pessoal. A luz lá dentro ainda está acesa: ele ainda deve estar a organizar a papelada do dia para depois ir dormir para a ala dos funcionários. Liam nunca costuma ficar até tarde, gosta de dormir cedo.

Eu nunca estou pronta para isto. Acho que nunca estaria pronta mental e fisicamente para algo como isto, nem que vivesse um milhão de anos. Só me resta – por mais cruel que isto soe – que ela morra antes de mim. A morte já pareceu mais longe do que agora. Estou a deixar-me levar, para ver onde a corrente me leva.

Espero que para bem longe daqui.

O aperto do guarda no meu braço diminui ligeiramente. Acho que ele já entendeu que eu não sou uma ameaça à parede de músculos que ele chama de corpo. Bate à porta e, quando ninguém responde durante longos segundos, dá-me um sorriso meio fraco. Ele é novo aqui, não me lembro de alguma vez o ter visto.

Por isso é que está a ser tão simpático: nos primeiros dias, eles são sempre.

Mas, ao fim de alguma convivência com os outros, acabam por se tornar iguais. Os novatos são programados para entender que não precisam de tratar bem os pacientes e reclusos para ganharem dinheiro ao fim do mês. Basta impor ordem, não importa se usam violência desnecessária para nos domar.

Já apanhei várias surras por coisas mínimas.

Sei como é a sensação de ficar assim, largada no chão como algo que já ninguém quer, ainda em choque. Recordando em loop infinito os nós dos dedos de alguém a quem nem o nosso nome interessa, contra a minha cara, com toda a força que conseguiu no impulso, sabendo que me vai magoar e sem hesitar um segundo na hora de deixar o meu nariz quebrado e a sangrar.

E, na hora da verdade, a enfermeira preenche o relatório dizendo que eu tropecei e bati contra uma parede.

Mesmo sabendo o que aconteceu, já que a enfermeira Olga Roberts é a amiga sombria da médica. Dão uma bela dupla: uma delas age e a outra encobre, varrendo a verdade para debaixo do tapete, onde ninguém a pode ver.

As suas mentiras são credíveis e lá fora ninguém quer saber dos doidinhos do hospício.

Afinal, cada um de nós, que está aqui, deixou a sua marca lá fora. Todos aqui matámos, sequestrámos, roubámos ou cometemos crimes hediondos, que a sociedade simplesmente não consegue assimilar, entender e perdoar. Nem nós percebemos o porquê de o termos feito: para alguns, apenas aconteceu. Não deu para controlar, foi no 'calor do momento'. Outros, como eu, não se lembram.

Estamos aqui a pagar pelo que fizemos e a ser tratados para um dia conseguirmos lidar com o mundo real sem cometermos os mesmos erros. Para a sociedade, nós merecemos tudo isto.

Antes, eu corria por Blackburn como uma criança feliz numa loja de doces. Como se isto não fosse uma maldita prisão: uma miúda com treze anos sem memória do que é a felicidade pode adaptar-se a condições extremas e achar que elas são normais, acho eu.

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