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Limpei o lugar em silêncio, varrendo e depois tirando a poeira. Estar calada ao lado dela não era desconfortável como nos jantares. Menty era uma ótima companhia, muitas vezes deixando o lugar mais leve. Por último decidi limpar a estante de livros dela.

Havia alguns livros de Menty que se destacavam entre os de medicina e biologia. Machado de Assis e Clarice Lispector, obras finas e coloridas entre os tijolões.

Tirei a hora da estrela dali, o exemplar estava velho e parecia ter acompanhado Menty em grandes aventuras pós apocalípticas, algumas pontas haviam sido secas e aquilo estava óbvio no papel e havia uma mancha vermelha na parte superior. Comecei a folhear o livro, eu já havia lido emprestado de uma amiga, era um livro duro sobre a realidade. Parei onde havia um marcador onde havia algo escrito á caneta.

"Te amo, traça de livros."

Letra cursiva azul, todas redondas. Aquela anotação deveria ter a mesma idade da edição daquele livro.Menty puxou o livro das minhas mãos. Ela estava com os olhos marejados, não me olhava diretamente, suas narinas estavam dilatadas.

— Você deveria estar arrumando as coisas.

Me lembro de engolir seco naquele momento, Menty continuava com o mesmo tom calmo, mesmo com a voz falhando. Talvez se eu perguntasse quem havia anotado aquilo ali, ela contaria. Todos naquela casas precisavam de uma válvula. Era estresse demais para ser carregado sozinho. Uma necessidade tão grande que Menty não teria dificuldade de confiar em uma semi desconhecida que havia tentado roubar os suprimentos de seu grupo de sobreviventes.

E eu poderia muito bem ter perguntado sobre seus demônios, o que a fazia revirar na cama, quem havia escrito aquilo para ela. Mas eu apenas devolvi o livro para o lugar e sussurrei um tudo bem.

Me pergunto ainda hoje se eu teria feito diferente, claro que Menty merecia ser ouvida. Ela havia sido palheta com cores vivas no meu mundo acizentado, mas naquele momento: Eu, ela e o livro na enfermaria éramos duas náufragas separadas por um extenso mar. Havia algo desesperador ali, todos eram ilhas distantes. Ninguém iria me impedir de me afogar. Minha cabeça estava cercada pelas nuvens negras dos meus problemas, os quais sentia vontade me abrir...

Ser mordida por um zumbi parecia fichinha comparado á me afogar metaforicamente. Ir enlouquecendo pouco aos poucos, entrando no mar com passos pequenos. Sentir a água gelada nos joelhos me ajudava a lembrar que eu estava viva ainda, mas em algum momento eu estaria em alto mar e ninguém viria atrás de mim. E Menty apertando aquele livro contra o peito, seria como seu último olhar tivesse sido na minha direção antes dela entrar ainda mais naquele metafórico e gelado mar.

— Acho que está tudo feito. — Digo passando os olhos no cômodo. Eu mordia a parte interna da bochecha, precisava sair dali.

— Acho que sim. — A parte esquerda do lábio se esticou, num pequeno e desconfortável sorriso. — Obrigada, iria demorar bem mais sem a sua ajuda.

— De nada. — Me viro, indo na direção da porta, mas antes digo.— Hora da estrela é o meu livro favorito dela.

— Tem bom gosto.

— Obrigada. — Quando me virei, Menty parecia ter se distraído do passado. O que era maravilhoso para mim. Falar do passado me faria chorar e chorar estava fora de cogitação. — Gosta de literatura, né?

— Claro, — Ela guardou a hora da estrela no lugar. — Antes eu tinha muito mais livros. Esses são apenas os meus queridinhos.

— Livros são melhores que muitas pessoas. — Digo com os olhos no fino livro vermelho na prateleira. Dom Casmurro. — Você acha que Capitu traiu o bentinho?

Combustão incompletaOnde histórias criam vida. Descubra agora