Capítulo 1 | Rotina

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ERA SE ESPERAR QUE SER ALUNA da escola em que se trabalhava deveria ser uma vantagem. Para Jaíne Lopes, definitivamente não era. O professor Josh, aquele que Jaíne almoçava quase todos os dias e discutiam conceitos filosóficos durante dias sem fim, dava aula de modelagem 3D e lhe reprovou no último ano, da última matéria.

Sempre que o via pelos corredores da escola, Jaíne secretamente xingava-o por ser tão criterioso e perfeccionista.

A sua história na Seventeen começou quando se destacou em um dos inúmeros projetos acadêmicos da escola. Após a apresentação, o professor esperou todos irem embora para lhe dizer que tinha surgido uma vaga administrativa na escola. Não era sua área, mas possuir o nome da Escola de Computação Gráfica faria bem em seu currículo, então Jaíne aceitou de boa.

Seus primeiros dias de trabalho na Seventeen, como controle de qualidade acadêmica, foi intensa. Números e mais números, eles não paravam de aparecer a cada minuto. Números de frequência de aula, números de matrículas por curso, taxa de inscrição, e demais exigências do trabalho.

Quando chegava o seu horário de ser aluna na turma do laboratório D, Jaíne trocava o terninho por jeans e frequentava as aulas, depois voltava a trocar o jeans e terninho para trabalhar. Uma vez, o professor Caio lhe perguntou por que fazia isso. Por que simplesmente não entrava com a roupa de trabalho na aula? Não era contra as regras da empresa, obviamente, se não Jaíne nem seria contratada. Porém Jaíne gostava de manter certos aspectos da sua vida separados e bem delineados.

Quando estava de terno, era o Controle de Qualidade da Seventeen, e quando vestia alguma peça mais informal, como seus jeans confortáveis, era só mais uma aluna do curso. As amigas diziam que ela tinha uma vida dupla estranha.

A verdade é que Jaíne gostava de trabalhar na Seventeen. As margens do calçadão de copacabana, a escola era moderna e com estrutura elegante. As salas onde ficavam os Macintoshs eram em clima de montanha; estranhamente os membros do corpo docente prezavam por ambiente frios ao máximo, por isso ela sempre precisava carregar aquele casaco de couro por onde quer que andasse na escola. Não importa se é verão ou outono lá fora, ali dentro era sempre inverno.

As Game Lounge, como eram chamadas as salas de espera, possuíam videogames, tvs que passavam jogos de futebol ao vivo, pufes e um enorme sofá preto. Este sofá era tão incrivelmente confortável e sedutor que secretamente Jaíne planejava tirar um cochilo nele, quando ninguém mais estivesse por perto, é claro. Toda vez que passava perto do sofá, em mais uma de suas intensas corridas administrativas em seu terninho feminino e saltos altos, seus olhos recaíram sobre ele, sonhadores e esperançosos. Um dia, eu vou dormir nesse imenso sofá, pensou. Esse era de longe o seu maior sonho de consumo da empresa pelos próximos meses.

Como funcionária nova, não foi difícil realizar suas tarefas, apesar de ser tecnicamente impossível terminá-las a tempo em seu horário. Cada dia que passava, sua lista de afazeres só aumentava. Com o tempo, Jaíne conseguiu administrar a atenção que os alunos precisavam com os números a serem estudados e as exigências dos professores.

A maior parte dos professores eram nerds amadurecidos, e não era preconceito de sua parte, pois os professores eram homens de óculos, um tanto anti sociais, com inteligência apurada e vício em games. Se pudesse ignorar como eles eram estranhos e bizarros, até poderia ter uma conversa agradável, principalmente com o professor Fryl, ele era muito bonito e charmoso.

Jaíne rapidamente se fez amiga das duas recepcionistas da escola, que coincidentemente possuíam os mesmos nomes. Sâmia Melo e Sâmia Torres. A Torres era uma morena curvilínea alta, com olhos grandes e bem marcados com delineador. Ela tinha uma mania irritante de mastigar chiclete nas horas vagas. A Melo era baixinha, branca, com adoráveis manchinhas no nariz e era noiva de um cara há uns dez anos.

Elas eram legais, simpáticas e contavam coisas dos outros como ninguém, o que fazia Jaíne segurar a língua diversas vezes, pois quem conta fofoca de alguém para você, certamente vai falar de você para os outros. Mantendo certa discrição de alguns aspectos da sua vida, elas eram amigas bem legais. Chegaram a frequentar algumas festas juntas, sempre após o horário do trabalho.

Trabalhar na zona sul tinha dessas vantagens. Copacabana não fechava nunca. Nunca mesmo. Sempre há coisas para serem feitas e a maioria da equipe principal, fora os professores, gostavam de ir até a praia e jogar vôlei, ás 22h da noite, após o expediente.

Nesses dias, Jaíne se sentava no quiosque e tomava água de coco ou uma coca gelada, pois nunca fora muito atlética. Ser alta lhe tornava um tanto desengonçada com bolas muito rápidas em sua direção, porém houve um dia em que os seus amigos de trabalho tentaram, realmente tentaram lhe ensinar. Era um sábado a noite e aparentemente ninguém tinha muito o que fazer depois de encerrarem o expediente às 19h, então a arrastaram até a praia e lhe incentivaram a jogar.

Quando Harry, um professor quarentão que mais parecia um urso, se ergueu no ar e arremessou uma bola em sua direção, Jaíne simplesmente lhes deu as costas e correu como nunca. Eles nunca mais a chamaram para jogar vôlei na praia a noite, não é como se Jaíne tivesse sentido alguma falta.

Em um mês, Jaíne sabia que seu chefe, o diretor de terno com caimento impecável e olhos escuros perspicazes, traia a esposa com a moça do setor financeiro.

Não é como se fosse algum segredo, pois eles não eram lá muito discretos. Só eles achavam que saírem e voltarem juntos, andar pela escola de mãos dadas, dar selinhos furtivos quando achavam que ninguém estava olhando, era normal. Sem contar as vezes quando ele ia até a sala dela, fechava a porta e demorava horrores para voltar.

Jaíne sabia disso tudo muito bem, pois trabalhava dentro do Hall da Diretoria. Sua mesa ficava de um lado e a mesa do diretor no outro, bem na mesma sala de vidros escuros, onde você poderia ver o que acontecia na recepção, porém não podia ser visto.

Houve uma vez que Jaíne contou trinta minutos inteiros. Não sabia porque, mas ela sempre contava os minutos de ausência do diretor na sala do financeiro. Não era como se fosse apresentar uma prova a esposa dele, mas gostava de saber das coisas. Simplesmente gostava de ter esse tipo de controle sobre o ambiente em que estava.

Sempre que via os dois juntos, o diretor e a moça do financeiro, Jaíne ressentia-se por dentro, pensando na esposa dele. O diretor era casado com uma bonita moça loira, que parecia ser simpática quando os via na igreja, e pela foto de sua mesa, possuía uma linda filha de olhos azuis e cachos dourados. Era realmente uma pena, Jaíne mal os conhecia, mas sentia-se muito mal em saber de uma coisa assim.

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