Lembranças

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- Está... - ele escutou a voz lenta e grave, ganhando velocidade no clarão branco e repleto de ondas gravitacionais.

Aos poucos a luminosidade intensa foi dando lugar a uma sala de estar.

- ... com sono - ainda deformado, o som ficou mais audível -, filho?

Quando o velocista desacelerou, apenas a luz da televisão de filtro redondo restou, iluminando os rostos do garoto loiro e seu pai.

- Não, papai - falou o menino rechonchudo, arregalando os olhos.

Sem camisa, aquele homem magro e careca, cheio de olheiras, aparentava estar cansado, por sua respiração ofegante. A voz de ambos permanecia lenta e deformada, mas de uma maneira que o Raiju, apenas ele no mundo, entendia e sabia perfeitamente onde e quando estava.

- Tem algo te incomodando no quarto, filho? - No instante em que terminou de perguntar, uma tosse tomou conta dele.

Uma roda de sangue foi expelida de sua garganta e ganhou destaque quando exposta no tapete felpudo e branco da sala.

- Vai pro quarto, Arthur! - exigiu o pai nervoso, apontando para escada.

Uma lágrima desceu pelo rosto do homem, enquanto o filho olhava confuso para a marca estranha no tapete. O Gladiador Azul observava tudo, rodeando o local numa frequência tão alta que não pôde ser percebido. Se escondeu na cozinha escura, os vendo quase estáticos.

- Vai agora, caralho! - gritou o senhor, com sua falha voz, aumentando a crise de tosse.

O pequeno menino de pernas roliças, trajando apenas uma fralda, correu pela escada, enquanto escutava as tossidas do pai, que ecoavam de toda a casa para o seu quarto. Era a deixa para que o herói acelerasse até o sofá, onde repousava o moribundo homem, com olhar fixo para os degraus donde seu filho acabara de pisar. O velocista suspirou parado de frente a ele.

- Eu esperei tanto por isso - disse o Raiju, ao contemplar o rosto congelado e tirou o seu capacete. - Por toda minha vida imaginei como seria voltar no tempo e vir aqui, aonde a gente se separa... pra sempre. - Sua mão enluvada, tocou o rosto do senhor. - Só pra te abraçar, pai.

Ele se curvou, ajoelhado, de cabeça baixa sobre o colo de seu genitor. Sua respiração, ofegante e descompassada, acabou por dar espaço a um grito de desabafo.

- Não podia ser assim! - berrou, revoltado. - Eu tive uma família, mas eles me deixaram cedo demais! - Acalmando-se, continuou a falar, enquanto as lágrimas escorriam em seu rosto. - Igual a você... e eu tive que aprender a me barbear sozinho; a conviver com a rejeição do maldito sangue verde; a viver num mundo de estátuas... e dói tanto, pai.

O choro intenso travou a sua garganta, de modo que não conseguia soltar uma palavra a mais e os soluços tomassem conta de si.

- Dói tanto, que eu não lembre mais da sua voz.

Abraçou-o, repousando a cabeça sobre o peito do homem pausado. Então, sentiu seus cabelos sendo afagados e, em seguida, sua cabeça sendo segurada por duas mãos, quando sentiu nela um beijo.

- Me perdoa, meu filho - disse a voz falha, emocionada.

Espantado, o jovem olhou para o tapete e nele viu o sangue da tosse de seu pai: um plasma verde, no tecido. Quando os lábios afastaram, ele ergueu a cabeça e viu o hematoma em forma de punho fechado, marcando o peito do esguio senhor.

- Tem uma direita potente - sorriu choroso ao dizer -, garoto.

Só então o rapaz abraçou forte aquele homem, num movimento tão rápido de ambos, que as faíscas de eletricidade iluminaram o ambiente. Quando ficaram de pés, contemplou seu pai, que como ele era um velocista.

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