Fazem dois domingos que eu voltei pra casa. Conto os dias através do domingo porque era o dia em que você costumava acordar no meu quarto, ligando o rádio cedinho e ascendendo o cigarro em direção da rua para que mamãe não sentisse o cheiro da fumaça.
As coisas não estão iguais meu amor.
Agora quando abro a janela até o dia cinza me perdeu a poesia. As vezes sinto tudo húmido, achando ser a chuva quando na verdade tinha ensopado a camisola de lágrimas.
Eu lhe contei que agora eu costumo chorar? Choro o tempo todo e nem mais percebo. Algumas noites mamãe ouve meus soluços e vem se deitar comigo. Não é a mesma coisa que você mas aproveito o seu abraço para delirar mais um pouco.
Eu não tenho saído muito de casa. Na verdade eu tentei somente uma vez, queria ir até o aparelho ver se ainda restava algo nosso por lá. Mas chegando a esquina vi um homem fardado que eu juro por Deus era você. Desmaiei ali mesmo. Acordei nos braços daquela senhora que nos vendia o pasquim enrolado em flores pra disfarçar, perguntando se havia alguém que pudesse me buscar e por onde eu tinha andado. Quando disse seu nome atordoada ela entendeu. Disse que eu podia esperar um pouco em sua casa até me lembrar onde ficava a minha.
As coisas andam difíceis pra mim meu amor.
Quando meu pai chegou de viagem eu não o recebi muito bem. Ele abriu a porta no meio da noite e o barulho me provocou pavor. Ao acender a luz do quarto eu só pude ver seu vulto e minha mente já aguardava pelo balde de água podre com gelo que costumavam me dar lá pelas 3h.
Não é culpa dele, eu sei. Não é de ninguém. Eu venho repetindo isso todos os dias pra ter certeza.
Achei algumas fotos nossa na escrivaninha. Eu e você, algumas com Clarice. Tinha uma em que meu pequeno Raul sorria no fundo abraçado com Tadeu.
Ele deveria estar fazendo 21 agora. Naquela época tinha 16. Minha mãe disse que eu não tenho mais 23 e isso não me faz sentido. Foi a idade em que parei de contar. As datas agora são muito confusas, não me fazem sentido.
Achei também um lenço seu aqui. Ele tem seu cheiro e esta envolto ao laço que eu costumava usar. Acho que ensopei outra vez a camisola porque sinto muito frio.
Decidi voltar pra cama e tomar outro comprimido daquele que me apaga.
Devo acordar daqui à um ou dois dias.
E começar o ciclo de confusões de novo.
As coisas não são mais iguais Franco.
Eu perdi tudo. Minha vida. E você.
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Um dia Qualquer em 1964
Short StoryUm dia Qualquer em 1964 - É a junção de cartas feitas para estudo de personagem do Musical " 1964 O Canto Calado" de Roberto Frantinelli. Franco e Ananda veem o Golpe Militar estourar no final do Ensino Médio. Com o tempo os jovens se unem ao Movime...