Família

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Os olhos infantis são invadidos por uma mancha branca semelhante a catarata que se espalha rápido. O pobre garoto continua relutando, mas perdeu a batalha há algum tempo. Já não há mais lucidez, apenas agonia. Seus movimentos tornam-se mais bruscos e violentos. Suas unhas consomem a própria carne como piranhas famintas. Os dentes ferem gravemente os próprios lábios e língua. Uma situação infeliz que nem a mais impura das almas mereceria ser condenada a passar.

Matheus procura em seus pertences algo semelhante a uma adaga para ferir misericordiosamente o coração que pertenceu ao menino e agora se transforma em uma das mais horrendas Criaturas. Encontra um canivete velho.

Aproxima-se do Demônio com o instrumento. Ergue alto a lâmina com a intenção de que isso o ajude a passar pelos ossos do tórax. Olhando para o canivete prepara seu corpo para usar todo peso e força nesse golpe para que seja decisivo. Todos seus músculos enrijecem, seu pulso palpita e o movimento  inicia. Porém em uma fração de segundo a luz da vela reflete no metal e atinge seus olhos penetrando seus pensamentos e processos mais internos. De alguma forma a luz, a faca, o garoto, a criatura, o movimento o fizeram entrar em um estado de consciência alterado. Em sua mente repete desordenadamente a última palavra do garoto.

- Família! Família! Família!

Vem-lhe a imagem da fotografia que viu no corredor da última casa que vasculhou.

- Família! Família! Família!

A imagem daquela família feliz vai dando lugar a outra imagem. Outra família. Uma que ele fez parte. Uma que sua consciência expulsou e agora estava enterrada nas camadas mais profundas da memória.

Ele agora se encontrava há sete anos. Cambaleando, atordoado, desmanchando-se em prantos. Segurando frouxamente uma faca de cozinha. Percorrendo um longo corredor infestado de fotos felizes que naquele momento eram como golpes no queixo impedindo-o de avançar. E no fim a visão perturbadora de sua esposa morta com o ventre rasgado e seu intestino espalhado ao redor e uma Criatura de formato infantil usando um laço rosa, penteado delicado e um vestido de seda cuidadosamente abotoado coberto agora por sangue e pedaços humanos se deliciando com os restos internos da mulher. Um Demônio de corpo inocente e angelical que Matheus já chamou de filha.

Ele aproxima-se da cena repugnante, e com a mão trêmula ergue alto a faca, prepara-se para o golpe e põe nele toda força que lhe resta. Todos seus músculos enrijecem, seu pulso palpita e o movimento  inicia junto com um enorme grito. A lâmina fere o ar e a Fera com a mesma facilidade. O grito cessa com o som da carne e ossos frágeis do Bicho.

Solta a faca cravada e deita ofegante ao lado dos corpos sendo completamente tomado pelos soluços e gritos de seu choro inconsolável. Seus músculos e pensamentos se concentram por inteiros na dura lamentação. Seus gritos não são fortes o suficiente, suas lágrimas não são o bastante. A dor sobrecarrega e drena qualquer fio de atenção. Não percebe que a sua volta o ambiente muda. As luzes enfraquecem, tomando um tom amarelado de chama, o corredor expande para um formato de cômodo, sua pele torna-se mais desgastada e velha, os corpos dão lugar a um apenas, estirado em uma cama improvisada com um canivete velho fincado no peito. Os fantasmas do passado o devolvem para o presente.

MATHEUSOnde histórias criam vida. Descubra agora