A cidade é pequena, dá pra visualizá-la por inteiro do alto do morro.
Ir lá pra uma caçada por comida é perigoso, nunca se sabe se há alguma das Coisas adormecidas escondidas nas casas. A limpeza que ele fez deve ter mantido todas as que sobraram no galpão, mas o receio e a incerteza ainda são fortes.
Vai lá poucas vezes, nunca à noite, na maioria delas para a biblioteca ou para algum mercado. Pega o que é necessário e volta pra casa. Busca ser o mais breve possível. Uma caçada dura bem mais tempo do que ele gostaria. Pode durar a manhã toda e mesmo assim ser em vão.
Não desce lá a muito tempo, os mercados já não têm nada e a biblioteca não lhe foi mais útil.
Ele reúne coragem junto com seus equipamentos: água, kit de primeiros socorros, uma bolsa para por o que leva e o que encontrar, uma tinta em spray, uma faca de caça, corda, um lampião à vela, fósforos, velas, flechas improvisadas e uma besta que já ornamentou a parede do principal bar da cidade. Sobe em sua bicicleta, desce a ladeira e em pouco tempo chega à cidade pela rua principal que a corta. As primeiras casas são marcadas com um "X" indicando que ele já vasculhou o local. Para de frente à primeira que não o tem.
Mantém sua bicicleta pronta pra fuga, empunha a besta e acende o lampião. Aproxima-se lentamente da porta como se houvesse uma força contra. Está trancada. Verifica as janelas, uma que leva a cozinha está quebrada. Põe seu lampião, na pia abaixo dela, verifica brevemente o local e então entra. Empoeirado, mofado, cheio de teias de aranha, mas nem as aranhas estão mais alí. Era uma boa cozinha, espaçosa, bons armários equipamentos que poucas pessoas poderiam pagar. Olha bem para tudo, com esperanças de encontrar algo útil. Com certeza eram ricos, o que lhe aumenta as expectativas. Será o primeiro lugar. Mas antes verificará o restante da casa. A porta da cozinha leva a um corredor, odeia corredores. São claustrofóbicos, difíceis de fugir e geram uma tensão que o agoniza. Esse em especial porque possui quadros de família. Isso o recorda o quanto elas eram felizes antes de Tudo, o quanto ele era, mas sempre que tenta lembrar de seu passado pré mudança sua cabeça dói como um bloqueio. Desiste de seguir em frente, não suporta. A cozinha deve bastar. Volta em ré, põe o lampião na passagem, para que se algo passe, tropece e o alerte. Põe a besta de lado, presa ao seu corpo por uma tira de cordão, pronta para alguma necessidade. Começa então a busca.
No primeiro armário há panelas e outros utensílios de cozinha, nada que já não possua. O próximo guarda caixas de comida estragada, abandonadas e confiscadas pelo mofo. O terceiro guarda produtos de limpeza, algo útil, mas não o foco. Pega uma garrafa de álcool e outra de água sanitária e continua a busca. O quarto e último armário guarda, alguns enlatados, e isso o alegra. Deve ser o suficiente para duas semanas, se racionar bastante. O fato de não precisar voltar por duas semanas é gratificante, evitaria por muito mais tempo se não soubesse que morreria de fome. Quer sair dali o mais rápido que conseguir. Checa apressadamente a geladeira, pega seu lampião e sai como um fugitivo. Apressa o passo em direção a frente da casa prendendo a respiração como se ela sugasse-lhe o ar. Ao chegar respira aliviado, sente-se liberto de um peso que não sabe explicar. Não gosta disso nem um tanto e não o faria se não fosse realmente necessário.
Pega o spray, marca metade de um "X" na porta. Monta em sua bicicleta e se dirige ao quarto. Pensa em como serão os próximos dias, planeja, faz seus cálculos de quando deverá voltar e já prepara sua mente para o inevitável. Observa a cidade, vazia, sem vida, sem cor, sem alma. Distante vê uma praça que costumava ser bem frequentada. Carrinhos de picolé, pipoca, churros, batatinhas, jovens dançando, passeando ou andando em seus patins, skates e patinetes fazendo manobras costumavam dominar a visão. E agora um deserto. Um movimento estranho nela o assusta e o faz parar. Com os olhos arregalados e atentos ele observa bem. Talvez tenha sido ilusão. Espera muito que tenha sido só isso. Mas algo mancha sua visão. Parece haver algo lá. Seu coração palpita, seu corpo treme e sua mão segura a besta. Ele tem que olhar. Se for uma das Coisas, pode ataca-lo na próxima visita. Mas é dia e ele nunca viu uma Coisa que não fugisse apavorada da luz. Deixa a bicicleta novamente pronta pra fuga e vai em direção à praça.
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MATHEUS
Mystery / ThrillerSozinho e assombrado por um passado nebuloso, Matheus sobrevive dos restos de uma cidade abandonada. Enfrentando seus medos mais intensos e segredos mais obscuros.