A Mordida

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Os primeiros raios do dia descem do topo da casa como uma cortina até cobrir o pequeno por completo. O menino muda seu movimento bruscamente, formando um arco com seu tronco suspenso e com cabeça e pés no chão, escuta-se o estalar de cada osso de sua coluna como se trincassem. Branda com bastante força em um tom inconfundível de desespero. Após alguns segundos a consciência volta. O arco se desfaz e ele cai cuspindo sangue. Matheus vai ajudá-lo.

- Você tá bem? O que houve? Você está ouvindo?

O garoto não consegue nada além de chorar. Matheus o abraça e conforta.

- Calma, carinha! Passou já!

Ambos sabem que está longe de passar. Mas falar e escutar tal coisa produz um reconforto fantasioso capaz de supor que até às coisas mais inevitáveis são evitáveis e que no futuro alcançarão a felicidade eterna dos livros da biblioteca.

Minutos se passam e o pranto encerra.

- Você tá melhor agora?

Confirma com a cabeça.

- Você pode me explicar como conseguiu isso? - Investiga com cuidado a mordida.

O menino estica seu braço trêmulo indicando a nuvem de fumaça. Matheus faz a associação com o grito que ouvira no túnel

- Por que não me contou?

- Medo.

- Tudo bem, eu entendo.

Há uma pausa.

- É melhor você tomar um banho agora. Vai lhe fazer bem. Enquanto isso vou procurar nos livros, algo que possa te ajudar.

Levantam e entram novamente. Ele vasculha em sua pequena biblioteca pessoal algo que possa ser útil enquanto o garoto toma banho. Por falta de algo mais específico, procura por picada de animais peçonhentos. Nada muito útil. Uma dúvida surpreende por não ter vindo naturalmente até então "o que causa as coisas?". Sabe que tudo começou com gatos "infectados" e que as mordidas provocam o contágio. Mas é tudo tão vago e possui tão pouco conhecimento que é impossível ajudar a criança.

- Achou? - pergunta o menino saindo do banho.

- Eh... Pouca coisa, nada muito efetivo. Sinto muito. Deita aqui, é melhor vc ficar em repouso.

O garoto deita na cama improvisada. Sua face expressa total falta de esperança.

Matheus se recolhe a seus pensamentos enquanto olha fixamente para um ponto qualquer. Entristece seu íntimo, pois após anos encontrou finalmente um outro sobrevivente e poucas horas após o encontro ele estava relando na morte. Muitos momentos do passado percebeu-se imaginando um encontro com outros sãos, entretanto nada semelhante transitou por sua mente.

O menino passa a sentir uma dor imensa, drenando as forças para gritar. As veias perto da ferida ardem dando-lhe a sensação de consciência da posição e formato de cada vaso, como um mapeamento perturbador que se expande partindo do ferimento. Seus ossos coçam, mas suas unhas encontram a carne como barreira. Sua mente premeditando a morte recorda das pessoas que o criaram, dos momentos difíceis, dos ensinamentos que recebeu, das histórias sobre o antigo mundo e de como conseguia ser feliz quando estava com essas pessoas apesar de tudo.

Utilizando de sua reserva de forças tenta retirar algo do bolso e balbucia algo. Dando-se conta do esforço da criança Matheus o ajuda. Retira dali um papel tão dobrado que não dá pistas do conteúdo. Indaga-se o que seria merecedor de tanto esforço. Abre cuidadosamente com receio de rasgar as dobras desgastadas enquanto pergunta o que é. O esforço do garoto em dar uma resposta é inútil, de sua boca só fogem engasgos e grunhidos. Descobre no papel a gravura de um mapa da região com uma marcação em vermelho num lugar há alguns quilômetros. Com dificuldade as sílabas saem pausadamente do menino com um sofrido gaguejo:

- Família.

MATHEUSOnde histórias criam vida. Descubra agora