02 | Assombrada

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"O tempo tem falado para mim
Sussurrando em meu ouvido
Dizendo: siga seu coração até que ele te despedace"
— Changing, John Mayer.

Abri os olhos com cautela, fechando-os com força logo em seguida por conta da luz que atravessava as janelas do quarto ainda não mobiliado. Grunhi de insatisfação ao pensar no trabalho de desencaixotar todas as minhas coisas, sentindo falta da minha antiga cortina acizentada em meio à claridade que se fazia presente no quarto.

Minha cabeça latejava e, agora, eu via que não havia tomado uma decisão muito sábia ao encher a cara na noite passada. Levantei-me e arrastei-me até a cozinha, onde Cora preparava uma de suas vitaminas diárias. Ela usava uma roupa de caminhada e despejava o líquido verde musgo que acabara de fazer em um copo, como se não tivesse ingerido uma quantia significativa de álcool na noite passada. Já eu, por outro lado, estava acabada. Minha amiga sempre teve uma tolerância maior para bebida e conseguia se recuperar bem rápido – à ponto de já estar pronta para o próximo round em poucas horas.

Fiz careta e neguei com a cabeça quando ela me ofereceu um gole da sua gororoba esverdeada.

— Eu bebi pra caralho ontem — ela riu, colocando os fios rebeldes de cabelo para trás da orelha.

— Como consegue estar tão disposta? —Minha voz soou mais como um resmungo.

Me joguei no sofá da sala, incapaz de ficar mais de meio segundo em pé.

— Correr é ótimo para curar ressaca — ela constatou. — E uma boa transa de manhã também.

A olhei e torci o nariz, abanando as mãos com força para que ela não dissesse nenhuma palavra sequer sobre como o cara em questão era bom de cama.

Ela sempre fazia isso.

Cora gargalhou, sugando o líquido de dentro do copo pelo canudo de plástico.

— Coraline Carter? — Arqueei as sobrancelhas em julgamento. — Eu preciso ressaltar os estragos que essas coisinhas fazem nos oceanos?

Ela rolou os olhos e se levantou, caminhado em direção à cozinha e jogando o canudo no lixo.

— A ressaca consegue te deixar mais chata do que o normal.

Foi minha vez de rolar os olhos.

— Diferente da sua, a minha noite não foi tão agradável.

Ela se sentou no chão ao lado do sofá e ficou cara a cara comigo.

— O que aconteceu?

— Fora o fato de você ter me feito ir embora sozinha? — Perguntei cinicamente.

Cora apertou os lábios em um careta carregada de culpa. Dei de ombros, dispensando suas desculpas. Ambas sabíamos que ela faria a mesma coisa quando saíssemos de novo.

— Sim. Fora isso — ela disse.

— Roubaram minha água — respondi casualmente.

Minha amiga gargalhou.

— É sério?

Concordei com a cabeça, totalmente descontente com o sorriso em seus lábios. Não era engraçado.

— Ele era um arrogante sem educação alguma e... — minha amiga franziu a testa e levantou a mão para que eu parasse de falar.

— Ele? — Ela perguntou. Concordei com a cabeça. — Era gato?

Recordei-me das diversas tatuagens espalhadas pelo seu braço e de como seus olhos azuis entravam em constraste com suas madeixas escuras mesmo em meio às luzes coloridas da boate.

— Isso importa? — Vacilei.

— Você poderia ter oferecido algo em troca da água — ela piscou um olho e sorriu divertida.

— Engraçadinha — empurrei um dos seus ombros com a mão.

— Dane-se, Aly. Você provavelmente nunca mais vai ver esse cara — ela pontuou. — E era só água.

Apertei os olhos em sua direção e, ao invés de só concordar, disparei:

— Fale isso para os animais marinhos.

É, talvez a ressaca me deixasse um pouquinho mais chata.

Minha amiga bufou, levantando-se do chão.

— Você é insuportável.

Suas palavras me lembraram de um certo alguém da noite passada, e um sorriso, automaticamente, adornou meus lábios.

— Não é a primeira vez que escuto isso.

O sorriso sumiu quando meu estômago se revirou, fazendo-me correr até o banheiro. Despejei tudo no vaso sanitário.

Decisão nada sábia.

[...]

Depois de uma sexta agitada, seguida de um sábado inteiro passando mal e um domingo de recuperação, a segunda de início às aulas havia chegado.

Cora e eu caminhávamos em direção ao campus, lado a lado. Ergui minha cabeça em direção a grande estrela ardente no céu, sentido seu calor aquecendo minha pele, e respirei fundo.

— É maior do que eu pensei — a voz de Cora fez com que eu desviasse minha atenção do sol e a focasse no grande prédio que se erguia à frente conforme nos aproximávamos. — Mais cinco anos de merda.

Minha amiga bufou, sem ânimo. Ri.

— Será que negatividade é contagioso? — Brinquei.

Cora bateu seu ombro no meu, rindo.

— Convivência com você — ela acusou.

— Sou realista, é diferente — dei de ombros.

Assim que pisamos na grama verde que antecedia o prédio, pude analisar o lugar melhor e constatei que Cora, no final das contas, tinha razão.

Seriam mais cinco anos de merda.

A faculdade definitivamente não era melhor que a escola que eu frequentara durante o ensino médio. No fim das contas, é um lugar cheio de pessoas que falam mal uns dos outros e beijam sem parar pelos corredores, assim como na escola. A única diferença é que agora somos adultos – ou pelo menos deveríamos agir como tais.

A circulação de pessoas ficara assustadoramente maior assim que adentramos o prédio. Homens e mulheres mais velhos guiavam e direcionavam os alunos até uma sala maior no fim do corredor. Pelo o que eu havia captado de algumas frações de conversas alheias, teríamos algumas palestras antes do ano letivo, de fato, se iniciar.

Cora e eu já estávamos devidamente acomodadas, sentadas uma ao lado da outra. Os alunos adentravam a sala aos poucos e se sentavam, alguns conversando sem parar com amigos e outros sozinhos e calados.

Podiam ser diferenciados com clareza:

Novatos e veteranos.

— Talvez esses cinco anos aqui não sejam tão ruins — minha amiga cochichou, me incentivando a olhar para a porta de entrada.

Meus olhos se prenderam nos rapazes que entravam na sala, rindo sobre alguma coisa que um deles dissera. E, como uma alma penada que voltara para assombrar aqueles que o haviam assombrado em vida, lá estava ele.

Prestes a assombrar cada pensamento meu.

Seus olhos azulados encontraram os meus e ele, antes sério entre os amigos risonhos, sorriu.

E eu instantâneamente soube que adoraria ser assombrada.

Crossroad (EM REVISÃO) Onde histórias criam vida. Descubra agora