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A vida em Wexford começava pontualmente às seis horas da manhã de segunda-feira, quando o despertador da Camila tocava, segundos antes do meu. Logo depois vinham violentas batidas na porta, um som que percorria o corredor à medida que alguém batia em cada porta.

– Rápido – disse a Camila, saltando da cama com uma velocidade que era ao mesmo tempo assustadora e inaceitável para aquela hora.

– Não consigo correr de manhã – falei, esfregando os olhos.

Camila já estava vestindo o roupão e pegando sua toalha e os outros itens para o banho.

– Rápido! – repetiu ela. – LAUREN! Rápido!

– Rápido o quê?

– Levante-se!

Camila transferia o peso do corpo de um pé para outro, ansiosa, enquanto eu me arrastava para fora da cama, me espreguiçava e remexia nas gavetas para pegar minhas coisas.

– Tão frio de manhã – comentei, esticando a mão para pegar o roupão. E estava mesmo. A temperatura do nosso quarto devia ter caído uns dez graus desde a noite.

– Lauren...

– Estou indo – falei. – Desculpa.

Eu preciso de um monte de coisas de manhã. Tenho um cabelo comprido e grosso que só pode ser domado com uso de um pequeno laboratório portátil de produtos. Na verdade (e tenho vergonha disso), um dos meus grandes medos de vir para a Inglaterra era ter que achar novos produtos capilares. É vergonhoso, eu sei, mas levei anos para elaborar meu sistema. Graças a ele, meu cabelo fica parecendo cabelo. Sem ele, fica armado, se arrepiando centímetro a centímetro conforme a umidade aumenta. Não chega a ser cacheado – é como se estivesse possuído.

Obviamente, eu precisava de sabonete líquido, de uma lâmina de barbear (me depilar nos chuveiros compartilhados... eu nem tinha pensado nisso ainda) e do creme para o rosto. E aí também precisava dos chinelos, para não pegar nenhuma micose.

Eu sentia o desespero crescente da Camila subir pela minha coluna, mas eu estava me apressando. Não estava acostumada a ter que pensar em tudo isso e carregar todas as minhas coisas às seis da manhã. Finalmente, reuni tudo o que era necessário e saímos correndo. No começo, fiquei me perguntando para que todo aquele alvoroço. Todas as portas do corredor estavam fechadas e mal havia barulho. Então chegamos ao banheiro e abrimos a porta.

– Ah, não – disse a Camila.

E foi aí que eu entendi. O banheiro estava completamente lotado. Todas as garotas do corredor já estavam lá dentro. As cabines já tinham sido ocupadas, e havia três ou quatro pessoas fazendo fila diante de cada uma delas.

– Você tem que ser rápida – disse Camila –, senão acontece isso.

Como descobri, não existe nada mais irritante do que ficar esperando outras pessoas tomarem banho. Você sente rancor por cada segundo que elas passam ali dentro; analisa quanto tempo estão levando e especula sobre o que estão fazendo. As pessoas do meu corredor tomavam banho em mais ou menos dez minutos cada uma, o que significa que levou pelo menos meia hora até eu conseguir entrar. Eu estava tão indignada pela lentidão delas que já tinha planejado cada um dos meus movimentos no banho. Ainda assim, levei dez minutos e fui uma das últimas a sair do banheiro.

A Camila já estava no quarto, vestida, quando voltei, com o cabelo ainda encharcado.

– Em quanto tempo você consegue se arrumar? – perguntou ela enquanto calçava os sapatos escolares.

Os sapatos eram, sem dúvida, a pior parte do uniforme. Eram emborrachados e pretos, com grossas solas antiderrapantes. Nem minha avó usaria aquilo. Se bem que minha avó foi Miss Bénouville em 1963 e 1964, um título cujo principal critério era a elegância da concorrente. Quer dizer, na verdade a definição de chique na Bénouville de 1963 e 1964 era altamente questionável. Minha avó usava, por exemplo, pantufas de salto alto com pijamas de seda. Aliás, ela comprou pijamas de seda para eu trazer para Londres. Eram ligeiramente transparentes. Deixei por lá.

Eu ia contar tudo isso a Camila, mas percebi que ela não estava no clima para histórias. Então conferi o relógio. O café da manhã era dali a vinte minutos.

– Vinte minutos – falei. – Fácil.

Não sei o que aconteceu, mas me arrumar foi muito mais complicado do que achei que seria. Eu tinha que vestir todas as partes do uniforme. Tive dificuldades com a gravata; tentei colocar um pouco de maquiagem, mas a luz perto do espelho era fraca. E tive que chutar quais livros levar para as primeiras aulas, coisa que eu provavelmente deveria ter feito na noite anterior. Resumo da história: saímos às 7h13. Camila esperou o tempo todo sentada na cama, os olhos cada vez mais arregalados e tristes. Mas ela não me largou lá e simplesmente foi embora, nem reclamou em momento algum. Ela foi uma fofa.

O refeitório estava lotado e barulhento. A parte boa de chegar tão atrasada era que a fila da comida já tinha esvaziado. Precisamos esperar apenas os poucos caras que tinham voltado para repetir. Peguei uma xícara de café antes de mais nada e um copo incrivelmente pequeno de suco morno. A Camila optou por uma seleção muito sensata de iogurte, fruta e pão integral. Naquela manhã eu não estava no clima para absurdos desse tipo.

Peguei um donut de chocolate e uma salsicha.

– Primeiro dia – expliquei a Camila quando ela encarou meu prato.

Ficou claro que seria complicado encontrar lugares para sentar. Encontramos dois bem no final das compridas mesas. Não sei por quê, procurei pelo Cole. Ele estava na ponta da mesa seguinte, entretido numa conversa com umas garotas do primeiro andar da Hawthorne. Voltei a olhar para o meu prato cheio de gordura. Eu sabia como aquilo me fazia parecer americana, mas não me importava muito. Só tive tempo de enfiar um pouco de comida goela abaixo antes de o Monte Everest subir em seu palanque e nos dizer que era hora de ir andando. De repente todo mundo estava em movimento, enfiando na boca um último pedaço de pão e tomando só mais um gole de suco.

– Boa sorte hoje – disse Camila. – A gente se vê no jantar.

O dia foi ridículo. Na verdade, a situação era tão séria que achei que só podia ser piada – como se talvez tivessem encenado um primeiro dia só para assustar os novatos. Eu tinha apenas uma aula de manhã, a misteriosa “Matemática Ulterior”. Durava duas horas e era tão terrivelmente assustadora que acho que entrei em transe. Depois tive dois tempos livres, dos quais eu tinha rido com desdém quando vi o meu horário. Ás duas e quinze, tive que voltar correndo ao meu quarto e me trocar.

Vesti um short por cima de uma calça de ginástica, uma camiseta, um casaco de flanela e aquelas caneleiras e sapatos com travas na sola que a Claudia me deu. De lá, andei três ruas até o campo que a escola dividia com uma universidade local. Se já é complicado andar nos paralelepípedos de chinelo, eles se tornam seu pior pesadelo quando você está usando chuteiras e caneleiras enormes e esquisitas. Quando cheguei, descobri que as pessoas (todas meninas) estavam (sabiamente) calçando os tênis e as caneleiras ali, e que todo mundo estava só de short e camiseta. Tirei a calça e o casaco. Coloquei as caneleiras estranhas e os tênis de novo. Para minha tristeza, descobri que a Spencer também estava no hóquei. Assim como minha vizinha Halsey, que morava no único quarto individual do alojamento, em frente ao meu. Ela tinha o cabelo bem curto e repicado e um dos braços cuidadosamente coberto por tatuagens. Havia um purificador de  ar gigantesco no quarto dela, obtido com algum tipo de permissão especial (já que não podíamos ter aparelhos domésticos). Halsey conseguiu fazer um médico alegar que ela sofria de alergias terríveis e que, portanto, precisava do purificador e do próprio espaço. Na verdade, ela usava o purificador para esconder que passava a maior parte do tempo livre fumando maconha atrás do outro e soprando a fumaça direto na saída de ar do aparelho. Halsey falava francês fluentemente porque passava alguns meses na França todos os anos. Halsey aparentava estar tão desanimada quanto eu com o hóquei. As outras pareciam cheias de uma determinação assustadora.

A maior parte das garotas tinha o próprio bastão para o esporte, mas os professores distribuíram alguns para as que não tinham. Então formamos fila para recebê-los; fiquei ali tremendo de frio.

A Sombra da EstrelaOnde histórias criam vida. Descubra agora