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– Bem-vindas ao hóquei! – ressoou a voz de Claudia, como um estrondo. – Quase todas aqui já jogaram hóquei antes, então vamos apenas repassar o básico e as posições para voltarmos à ativa.

Ficou bastante evidente, e bem rápido, que “quase todas aqui já jogaram hóquei antes” na verdade significava “todas vocês já jogaram hóquei antes menos a Lauren”. Ninguém além de mim precisava das instruções iniciais: como segurar o bastão, com qual lado dele atingir a bola (a parte reta, não a arredondada). Ninguém precisava que mostrassem como correr com o bastão ou como atingir a bola. A quantidade total de tempo dedicada a esses tópicos foi cinco minutos. Pode me Chamar de Claudia fez uma inspeção rápida para ter certeza de que todas estávamos adequadamente vestidas e de que tínhamos todos os acessórios. Parou na minha vez.

– Protetor bucal, Michelle?

Protetor. Um pedaço de plástico que ela tinha deixado na minha porta de manhã. Eu tinha esquecido.

– Amanhã – disse ela. – Hoje você só assiste.

Então me sentei na grama na lateral do campo enquanto todas as outras colocavam seus pedaços de plástico na boca, transformando o espaço anteriormente repleto de dentes em caretas alarmantes de azul-néon ou rosa-shocking. Elas corriam para cima e para baixo no campo, passando a bola de um lado para outro, umas para as outras. Claudia andava ao longo do campo o tempo todo, gritando comandos que eu não entendia. O processo de atingir a bola parecia bastante objetivo de onde eu estava, mas essas coisas sempre enganam.

– Amanhã –ela me disse quando a aula acabou e todo mundo foi saindo do campo. – Protetor. E acho que vamos começar com você no gol.

O gol me pareceu uma posição especial. Eu não queria nada especial, a não ser ficar sentada na lateral embaixo de uma pilha de cobertores. Nós voltamos correndo para Hawthorne (e com isso quero dizer correndo literalmente), onde todo mundo já estava de novo competindo pelas cabines de banho. Encontrei a Camila já no quarto, seca e vestida. Aparentemente havia chuveiros no vestiário da piscina.

Os pratos do jantar foram: batatas assadas, sopa e algo chamado hot pot, que parecia carne com batatas. Peguei isso. Nossos grupos estavam ficando cada vez mais previsíveis, e eu começava a entender a dinâmica. Cole, Andrew, Spencer e a Camila eram todos amigos do ano anterior. Três deles tinham se tornado monitores; A Camila não. A Camila e a Spencer não se davam bem.

Tentei entrar na conversa, mas descobri que não tinha muito a contribuir. Então o assunto chegou ao Estripador, e resolvi entrar com um pouco de história familiar.

– As pessoas adoram assassinatos – falei. – Minha prima Diane namorou um cara que estava no corredor da morte no Texas. Quer dizer, não sei se eles namoravam, mas ela escrevia cartas para ele o tempo todo, dizia que eles estavam apaixonados e que iam se casar. Mas no fim das contas o cara tinha tipo umas seis namoradas, então eles terminaram e Diane fundou o Ministério Anjos da Cura...

Conquistei a atenção deles. Todos passaram a comer mais devagar e olhavam para mim.

– Sabem – falei –, a prima Diane gerencia esse Ministério da sala da casa dela. E do quintal. Ela tem 160 estátuas de anjos no quintal. Além de 875 estatuetas, bonecos e fotos de anjos pela casa. E as pessoas a procuram para fazer terapia angelical.

– Terapia angelical? – repetiu a Camila.

– É. Ela toca música New Age, faz a pessoa fechar os olhos e aí canaliza uns anjos. Ela diz os nomes deles e as cores das auras e o que eles estão tentando comunicar à pessoa.

– A sua prima é... maluca? – perguntou Cole.

– Não acho que ela seja maluca – falei, atacando meu hot pot. – Uma vez, eu estava na casa dela. Quando fico entediada por lá, eu canalizo os anjos, para ela sentir que está fazendo um bom trabalho. Eu faço assim...

Inspirei longa e profundamente para preparar minha voz de anjo. Só que, infelizmente, fiz isso enquanto mastigava o hot pot. Um pedaço de carne escorregou pela minha garganta; eu o senti parar em algum ponto logo abaixo do meu queixo. Tentei engolir, mas nada aconteceu. Nada. Tentei falar. Nada. Todo mundo estava me olhando com atenção. Talvez achassem que fizesse parte da encenação. Eu me afastei um pouco da mesa e tentei tossir com mais força, depois mais força ainda, mas meus esforços não surtiram efeito. Minha garganta estava bloqueada. Meus olhos lacrimejavam tanto que tudo começou a parecer meio embaçado. Senti uma onda de adrenalina... e então tudo ficou branco por um segundo, de um branco brilhante, completo e total. O refeitório inteiro desapareceu e foi substituído por esse panorama infinito que parecia papel. Eu ainda conseguia sentir e ouvir, mas parecia estar em outro lugar, em um lugar sem ar, em um lugar onde tudo era feito de luz. Até quando eu fechava os olhos, lá estava. Alguém estava gritando que eu tinha engasgado, mas as palavras soavam muito distantes. E então havia braços em volta da minha cintura. Um soco atingindo a região abaixo das minhas costelas. Fui jogada para cima, várias vezes, até sentir um movimento. O refeitório voltou para o lugar quando o pedaço de carne saiu voando para fora do meu corpo, voando na direção do pôr do sol, e uma corrente de ar invadiu meus pulmões.

– Você está bem? – perguntou alguém.

– Consegue falar? Tente falar...

– Eu...

Eu conseguia falar, e era só isso que eu tinha vontade de dizer no momento. Deixei-me cair no banco e descansei a cabeça na mesa. O sangue latejava em meus ouvidos. Examinei profundamente as marcas na madeira e inspecionei os talheres bem de perto. Meu rosto estava molhado de lágrimas que eu não me lembrava de ter derramado. O refeitório ficou em silêncio completo. Pelo menos eu achava que era silêncio. Meu coração fazia um estrondo tão alto em meus ouvidos que abafou todo o resto. Alguém estava dizendo às pessoas para que se afastassem para me deixar respirar. Algum colega me ajudou a levantar. E aí um professor (acho que era professor) estava na minha frente, e Spencer também estava ali, enfiando a enorme cabeça na cena.

– Estou bem – falei, com a voz rouca. Eu não estava bem. Só queria ir embora dali, ir para algum lugar e chorar.

Ouvi o suposto professor dizer:

– Spencer, leve-a para o san.

Spencer grudou em meu braço direito. A Camila grudou no esquerdo.

– Eu cuido dela – disse Spencer, secamente. – Pode voltar a comer.

– Eu vou junto – devolveu Camila.

– Eu consigo andar – respondeu minha voz esquisita.

Nenhuma das duas me soltou, o que provavelmente foi bom, porque no fim das contas meu tornozelo e meus joelhos tinham ficado completamente molengas. Elas me acompanharam até o corredor central do refeitório, me conduzindo por entre os bancos. As pessoas se viravam para me ver sair dali. Considerando que o refeitório era uma antiga igreja, nossa saída devia estar parecendo o fim de uma cerimônia de casamento muito incomum: eu sendo arrastada pela nave por minhas duas noivas.

A Sombra da EstrelaOnde histórias criam vida. Descubra agora