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Quando acordei no dia seguinte, dei de cara com duas estranhas no meu quarto: uma tinha cara de mãe e a outra era uma garota de longos cabelos negros que usava um razoável suéter cinza de caxemira e calça jeans. Esfreguei os olhos rapidamente, toquei em algumas partes do meu corpo para ver se tinha alguma peça de roupa tanto em cima quanto embaixo e descobri que tinha ido dormir de uniforme. Eu nem me lembrava de ter ido para a cama. Apenas descansei os olhos por um minuto, e agora era de manhã. Puxei o cobertor para cima de mim e emiti um ruído parecido com “oi”.

– Que merda, acordamos você? – disse a garota. – Estávamos fazendo de tudo para evitar.

Então reparei nas quatro malas, nos dois cestos de roupas, nas três caixas  e no violoncelo, tudo já dentro do quarto. Aquelas pessoas deviam estar andando na ponta dos pés fazia algum tempo, tentando se movimentar ao redor do meu corpo adormecido e uniformizado. Então ouvi o estrondo no corredor, o som de dezenas de pessoas chegando com bagagens.

– Não se preocupe – disse a garota –, meu pai não entrou aqui no quarto. Não quero incomodar você. Pode voltar a dormir. Michelle, não é?

– Lauren – falei. – Caí no sono ainda de...

Nem terminei a frase. Não tinha por que apontar o óbvio.

– Ah, não tem problema! Não vai ser a última vez, pode acreditar. Meu  nome é Karla Camila Cabello, mas todo mundo me chama de Camila.

Eu me apresentei à mãe da Camila e então segui para o banheiro a fim de escovar os dentes e tentar ficar um pouco mais apresentável de forma geral. Os corredores fervilhavam. Como consegui continuar dormindo durante aquela invasão, não sei. Havia abraços e beijos jogados pelo ar e um monte de discussões veladas com pais que tentavam fazer censuras discretas. Havia lágrimas e despedidas. Eram todas as emoções humanas acontecendo exatamente ao mesmo tempo. Ao passar pelo corredor, ouvi a voz de Claudia ecoando três andares abaixo, saudando as pessoas com seu “Pode me chamar de Claudia! Como foi sua viagem? Que bom, que bom...”

Finalmente cheguei ao banheiro. Debrucei-me em uma das janelas: lá fora a manhã era clara e sem nuvens. Na verdade só havia três ou quatro vagas de estacionamento na frente da escola. Os motoristas tinham que se revezar e manter os veículos quase que em movimento, descarregando uma ou duas caixas antes de continuar andando para dar espaço à pessoa seguinte. A mesma cena se desenrolava do outro lado da praça, no dormitório dos garotos. Eu tinha planejado entradas muito melhores. Tinha feito roteiros para todo tipo de saudação, recapitulado minhas melhores histórias. Até agora, no
entanto, eu estava perdendo de dois a zero. Escovei os dentes, passei água gelada no rosto, penteei o cabelo com os dedos e aceitei que era com aquela aparência que eu ia conhecer minha nova colega de quarto. Já que ela era dali da Inglaterra mesmo e, portanto, podia ir para a escola de carro, Camila tinha trazido mais coisas que eu. Muito mais. Havia várias malas, que a mãe dela desfazia sem parar, empilhando tudo sobre a cama.

Havia caixas de livros, umas sete dezenas de almofadas, uma raquete de tênis e uma variedade de guarda-chuvas. Os lençóis, toalhas e cobertores dela eram todos melhores que os meus. Ela tinha trazido até cortinas. E o violoncelo. Quanto aos livros, ela tinha por baixo uns duzentos ali, se não mais. Olhei para minhas caixas de papelão e minhas miçangas decorativas e o cinzeiro e a minha única prateleira de livros.

– Posso ajudar? – perguntei.

– Ah... – Camila se virou para olhar para suas coisas. – Acho que já... Acho que já trouxemos tudo aqui para dentro. Meus pais têm que fazer uma longa viagem de volta, sabe, e... Eu só vou lá fora para me despedir.

– Já acabaram?

– Sim, bem, estávamos empilhando algumas coisas no corredor e trazendo para dentro uma de cada vez, para não incomodar você.

Camila ficou fora por uns vinte minutos e, quando voltou, estava com os olhos vermelhos e fungando. Ela ficou um tempo desfazendo as malas. Eu não sabia se deveria oferecer minha ajuda de novo, porque as coisas pareciam meio que pessoais demais. Mas ofereci mesmo assim, e Camila aceitou, agradecendo muito. Ela me disse que eu podia usar qualquer coisa que quisesse, ou pegar roupas emprestadas, ou cobertores, ou qualquer outra coisa de que eu precisasse. “É só pegar”, era o lema da Camila. Ela explicou tudo que Claudia não tinha explicado: como, onde e quando permitiam que a gente usasse o telefone (dentro da casa e do lado de fora), o que se fazia no tempo livre (trabalhos, geralmente na biblioteca ou dentro da casa).

– Você morava com a Spencer antes? – perguntei, enquanto cobria a cama dela com uma colcha pesada.

– Você conhece a Spencer? Ela é monitora-chefe agora, então ganhou um quarto só para ela.

– Jantei com ela ontem à noite – falei. – Ela parece meio... intensa.

Camila bateu uma fronha.

– Ela é legal. A família faz muita pressão para ela ir estudar em Cambridge. Eu odiaria se a minha fosse assim. Meus pais só querem que eu dê o meu melhor, e vão ficar felizes não importa para onde eu queira ir. É muita sorte mesmo.

Arrumamos as coisas dela até a hora de nos vestirmos para o jantar de Boas-Vindas de Volta a Wexford. Não era o esquema aconchegante da noite anterior: o salão estava completamente lotado. E dessa vez eu não era a única de uniforme. Eram blazers cinza e gravatas bordô listradas até onde os olhos conseguiam alcançar. O refeitório, que parecera enorme quando só havia um punhado de alunos na noite anterior, encolheu consideravelmente. A fila para pegar comida serpenteava até a porta. O espaço que restava nos bancos era suficiente apenas para todo mundo conseguir sentar espremido. Havia
mais algumas opções para o jantar: carne assada, bolo de cenoura, batatas, vários tipos de legumes e verduras. A gordura, fiquei feliz ao constatar, ainda estava presente.

A Sombra da EstrelaOnde histórias criam vida. Descubra agora