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– Eu me sinto tão sem graça perto de você – disse Camila.

– Sem graça? Mas você é Linda!

– Pois é. Isso não é muito interessante.

– Você... você sabe tocar piano! E tem cachorros! E mora em uma... meio que uma casa de fazenda! Em um vilarejo.

– O que também não é muito empolgante. Eu adoro o meu vilarejo, mas lá é todo mundo bastante... normal.

– Na nossa cidade – falei, calmamente –, você seria tipo um deus.

Ela deu uma breve risada.

– É sério – insisti. – Minha família... quer dizer, minha mãe, meu pai e eu... nós somos os normais da cidade. Por exemplo, meu tio Will. Ele tem oito
freezers.

– Isso não me parece tão estranho.

– Sete ficam no segundo andar, no quarto de hóspedes. Ele também não acredita em bancos, então guarda o dinheiro em potes de manteiga de amendoim dentro do armário. Quando eu era pequena, ele me dava potes vazios de presente para eu juntar dinheiro e vê-lo crescer.

– Ah – disse ela.

– E tem também o Billy Mack, que fundou a própria religião na garagem de casa, a Igreja Universal do Povo Universal. E até minha avó, que é quase normal, posa para uma fotografia formal todos os anos em um vestido levemente indecente e manda a foto por correio para todos os amigos e a família, incluindo meu pai, que rasga sem nem abrir o envelope. Minha cidade é assim.

Camila ficou em silêncio por um instante.

– Estou com muita vontade de conhecer sua cidade – disse ela, finalmente. – Eu sou sempre a garota sem graça.

Pelo jeito como ela falou, tive a impressão de que era algo doloroso para Camila.

– Você não me parece sem graça – falei.

– Você ainda não me conhece direito. E eu não tenho tudo isso – disse ela, acenando para o meu computador para indicar minha vida no geral.

– Mas você tem tudo isso – retruquei, e também balancei os braços, na tentativa de indicar Wexford e a Inglaterra no geral, mas acabou parecendo que eu estava sacudindo pompons invisíveis. Tomei mais um gole de chá. Minha garganta estava voltando ao normal agora. De vez em quando eu me lembrava de como era não conseguir respirar e daquele branco estranho...

– Você não gosta da Spencer – falei, piscando com força.

Eu tinha que dizer alguma coisa para tirar aquilo da minha cabeça. Provavelmente foi um pouco rude.

Camila torceu a boca.

– Ela é... competitiva.

– Parece uma palavra educada para descrever o que ela é. Foi assim que ela conseguiu ser monitora?

– Bem... – Camila remexeu no meu edredom por um momento, beliscando pedacinhos de tecido e depois os soltando. – Os responsáveis pelas casas escolhem seus respectivos monitores. Claudia fez dela a monitora-chefe, o que foi merecido, imagino...

– Você se candidatou? – perguntei.

– Não é uma eleição. Só escolhem você. E você não precisa ser desagrad... quer dizer, eu gosto muito da Ally. E o Cole e o Andrew são bons amigos. É só que a Spencer, bem... tudo meio que virava uma competição. Quem estudava mais. Quem era melhor nos esportes. Quem namorava quem.

Tirando o fato de ser uma pessoa que usava a palavra “respectivos” enquanto criticava alguém, Camila também era do tipo que parecia se sentir mal de falar mal de outra pessoa. Ela fechou as mãos com força algumas vezes, como se a fofoca exigisse pressão física para deixar seu corpo.

– Assim que chegamos, eu namorei Andrew por um tempo – disse Camila. – Antes disso, Spencer não tinha o menor interesse nele. Mas ela nunca poderia deixar nada assim passar impune. Ela saiu com ele depois que terminamos, e aí terminou com ele instantaneamente, mas... ela tem que... bem, eu não preciso mais conviver com ela. Agora moro com você.

Camila soltou um curto suspiro, como se tivesse soltado um demônio interior.

– Você está namorando alguém agora? – perguntei.

– Não. Eu... Não. Talvez na faculdade. Este ano estou me concentrando em estudar para as provas. E você?

Repassei mentalmente a breve e sofrível história de minha vida amorosa em Bénouville. Eu também só vivia para a escola. Tinha sido muito difícil entrar para Wexford. E eu não sabia ao certo se alguns amassos com amigos no estacionamento do Walmart consistiam em namorar alguém. Agora que eu estava pensando sobre o assunto, talvez eu também estivesse esperando... esperando ir para Londres. Em minha imaginação, eu sempre idealizava alguma figura ao meu lado em Wexford. Esse prospecto parecia improvável depois da cena daquela noite, a não ser que os ingleses curtissem gente capaz de ejetar comida da garganta em alta velocidade.

– Eu também – falei. – Estudar. É o que vou fazer este ano.

Claro, nós duas queríamos dizer isso até certo ponto. Eu tinha ido para estudar. Eu teria que tentar entrar para a universidade enquanto estivesse ali. Realmente ia ler todos aqueles livros da minha prateleira, e estava animada de verdade com as minhas aulas, ainda que parecesse que elas provavelmente fossem me matar. Mas nenhuma de nós duas estava dizendo a verdade completa nesse quesito, e ambas sabíamos disso. Houve um olhar, um clique quase audível quando nos unimos diante dessa mentira mútua. Camila e eu nos entendíamos. Talvez fosse ela a figura que eu sempre imaginei ao meu lado.

A Sombra da EstrelaOnde histórias criam vida. Descubra agora