Posse - Parte I

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De madrugada, ao recordar-se dos acontecimentos daquela noite (e corar em reflexo), Adrien soube que tudo começara logo ao chegar. Félix não estava na varanda como na noite em que se beijaram pela primeira vez, fazia pouco mais de três meses. Muito menos na sala ou na cozinha, visíveis através das esquadrias.

Foi a luz a derramar-se do corredor que levava ao quarto dele que chamou sua atenção em primeiro lugar. Sempre cumprimentava o rapaz antes de entrar no apartamento, mas apenas desta vez concedeu a si mesmo o direito de adentrar sob o pretexto de encontrá-lo.

E ele estava realmente lá. Em meio a uma faxina, aparentemente. O chão e as paredes estavam limpos como de costume, o que lhe fez pensar quanto tempo tomava dele para que assim se mantivessem. Duas das três portas do armário foram abertas, escancarando o espaço ainda por ser preenchido. Duas pilhas de roupas dobradas ocupavam uma ponta do colchão, e as restantes já haviam sido penduradas em cabides, sem um único vinco. O restante dos objetos eram poucos, espalhados pela porção restante da cama. Meia dúzia de livros, um tablet, alguns enfeites sóbrios.

Corrigindo: ao final de uma faxina.

― Te deixaram sozinha quando foram ao baile, Cinderella? ― indagou, divertido, apoiando-se contra o batente da porta de braços cruzados.

― Ao menos o príncipe veio me ver. ― Foi a réplica quase imediata. Ergueu os olhos então do montante de camisas sociais que estava prestes a mover e arqueou uma das sobrancelhas, de maneira provocativa. ― Que honra.

Não fora assim tão silencioso ao procurá-lo se Félix conseguira prever sua chegada. E acima de tudo, não imaginara que sua tática seria usada contra si mesmo: ao implicitamente chamar o rapaz de princesa, não esperava corar ao ser denominado príncipe.

Tossiu para disfarçar o próprio embaraço e perguntou-lhe, de modo galante ao curvar-se: ― E você aceitaria minha ajuda para a nobre tarefa de arrumar o seu quarto?

― Se você se oferece com tanto entusiasmo... ― permitiu o rapaz diante do sorriso aberto de Adrien. ― Mas não é tão divertido quanto parece.

O herói deu de ombros e seguiu suas instruções à risca para que ele se livrasse mais rapidamente das exigências domésticas. Não durou muito, mas enquanto auxiliara na organização percebeu o quanto o quarto de Félix era neutro. Sem qualquer bagunça ou acúmulo de pertences pessoais, parecia dizer muito pouco de quem vivia ali, porém era o inverso.

Dizia muito de seu desapego. De sua redução ao essencial. De sua organização. Um ambiente previsível, em que qualquer objeto poderia ser encontrado com facilidade. Porque ele queria que a própria vida fosse previsível, e isso era tudo que Chat Noir não era.― Sempre quis saber porque tem tão poucos livros. ― Deixou que a curiosidade se manifestasse ao alinhar os poucos volumes em uma das prateleiras.

― Eu literalmente trabalho em uma biblioteca ―confessou ele. Não que o jovem já não soubesse.

― Mas não faz questão de ter seus favoritos com você?

Essa total falta de apego lhe passava a impressão de uma indiferença, tão profunda que o assustava. Por que, afinal, Adrien era importante em sua vida o suficiente para superar tanto desprendimento?

― Muito pó para limpar ― explicou Félix, ao abrir a última das portas do armário.

― Seu maníaco por limpeza ― brincou, observando-o de esguelha.

― Não discordo do termo.

E o rapaz correspondeu ao seu sorriso de forma sutil.

***

Sadique | Chat Noir | YaoiOnde histórias criam vida. Descubra agora