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Ele não costumava falar muito, geralmente se misturava com outros guardas e preferia passar despercebido. Fazer o seu trabalho bem feito era prioridade. Valentin Salazar mantinha seu dia a dia numa rotina sólida, que não gostava de quebrar. Acordava sempre às 4 da madrugada, polia sua espada e seguia as ordens que vinham do seu general, geralmente passadas para ele por um menino magricela de 12 anos que gritava de cabana em cabana naquele acampamento de 200 homens. O que ele não imaginava era que ficar longe da guerra lhe causaria mais problemas do que estar no campo de batalha.

Aquele era o último dia de acampamento. O reino de Solaire havia ganhado a guerra, que durou dois anos. Naquele dia, o bravo exército ergueria suas bandeiras de guerra vermelhas, manchadas com o sangue já podre e fétido dos seus inimigos, e orgulhosamente marcharam para a cidade com mais uma terra conquistada e purificada com o sangue dos descrentes de Cristo.

─ Acabou! Hora de partir! ─ gritava o menino sujo de lama.

Solaire estava crescendo bastante. Na maioria das batalhas, se impunha sobre pequenos vilarejos de outros reinos, considerados pagãos e não amantes do verdadeiro Senhor. Conquistar as terras que julgava divinas em nome de Deus era a maior motivação para as guerras que o rei Maximus tinha para si. Basicamente, estes eram os motivos de sempre. Tudo se justificava como 'a vontade de Deus, para Deus e por Deus'. Annuit Coeptis, Ele aprova nossos feitos, como a majestade gostava de dizer.

Mulheres e crianças eram salvas e, posteriormente, eram purificadas e transformadas em serviçais. Quanto aos homens, esses não tinham chance alguma. A tirania sempre preferia aniquilar aqueles que, no futuro, pudessem gerar bastardos ou causar problemas para o trono. Assim, era mais fácil lidar com os mais novos agregados antes que eles pudessem se rebelar por todo terror sofrido. Claro, velhos também eram poupados da escravidão e recebiam a morte como prêmio.

A merda era frequentemente o prato dos capturados. Sem alimento, água ou cuidados, sobreviviam apenas as mulheres mais fortes. Algumas pediam para suas colegas as sufocarem até a morte na tentativa de se livrarem da punição de estarem numa terra "não santa". Na maioria das vezes, as jovens solteiras eram as mais desesperadas e perdiam a esperança depois de serem estupradas coletivamente dia após dia. Já as mães, que tinham as suas crias acorrentadas, tentavam permanecer firmes, acreditando que pudessem salvá-las da morte que lhes batia a porta.

Filhos e filhas tinham seus pescoços apertados por correntes de ferro que contaminavam seus corpos com o sangue de outros, que sofreram com a ferramenta anteriormente. Eram arrastados em fila, ainda em seus trapos, com os bolsos totalmente despojados. Afinal, Solaire não desperdiçaria nenhuma moeda encontrada naquele paraíso de esperança que tinha desbravado.

Grande parte do terror era arquitetado pela mente sádica do general Koldo. Os conselheiros reais nunca foram a favor da promoção deste a condição de líder da Guarda Real, justamente por causa da insanidade de suas ações. Essa, porém, sempre foi sua maior aspiração, que na maioria das vezes era vivida pelo rival Valentin. Agora que a guerra tinha chegado ao fim, caso não fosse escolhido, já havia prometido a si mesmo traçar um plano que o colocasse diretamente ao lado do rei.

Ser guarda real tinha suas vantagens e todos os generais cobiçavam a posição. As regalias e as facilidades de defender a corte somente em caso de necessidade, mas ainda assim estar no centro de tudo e não se envolver em combates tão frequentemente era, de longe, a melhor carreira de guerra em Solaire. Koldo e Valentin eram os mais cotados para o cargo naquele momento.

Valentin nunca deu muita atenção para as rixas que o rival cultivava; fomentar ainda mais os problemas que ele causava era fazer parte do jogo sujo que Koldo esperava que ele jogasse. Mesmo se esquivando, ele sabia que o sádico era um concorrente de peso para o cargo.

Rixas de lado, tudo que Valentin mais queria era tomar um banho como não tomava há anos. Sua barba mostrava cortes irregulares marcados pelas facas, os cabelos longos e despenteados davam-se a aparência de um bruto homem das cavernas, de olhos verdes claros, que empunhava uma espada como ninguém. Inegavelmente, aos 29 anos de vida, muitos deles passados em meio à guerra, seu físico era excelente. Seu treinamento militar, nada piedoso, fez com que se destacasse entre os outros soldados da sua tropa pelo corpo e pela força.

Apesar de não ser a mente por detrás daquela carnificina, seu ar de liderança parecia ter efeito sobre os outros homens, que mostravam respeito e seguiam seus passos. Praticidade, cálculo rápido e atitude eram qualidades que soldados valorizavam em alguém. Valentin conseguia pegar as rédeas da situação e resolver problemas sem fazer rodeios. Alguns guardas tinham medo dele. Era praticamente impossível ler a sua mente, visto que sua expressão facial permanecia inexpressiva, nunca revelando suas dúvidas e seus sentimentos. Poucos conseguiam conversar com o verdadeiro Valentin; tinha tão poucos amigos que nem ele mesmo se lembrava quem eram. Ele sabia como manter sua reputação.

Os dias na guerra eram uma surpresa. No outono, ora as terras estavam cobertas pela relva leve, ora tomadas por chuvas torrenciais que deixavam a paisagem lamacenta. O fim era tudo que aquela tropa queria e, apesar da excitação da vitória ser motivo de alegria, muitos homens se perdiam no caminho.

Valentin revezava o puxar de uma carroça onde seu aliado, que tinha perdido um dos braços em batalha, e dois outros feridos eram transportados.

─ Enfim vamos sair dessa bosta! ─ dizia o aleijado.

─ Já saímos, agora quem se fode é quem tem que puxar sua carroça, ─ retrucou Valentin enquanto os puxava.

Ele costumava ouvir que a vida já era triste demais para viver chateado, às vezes recebia conselhos como "Sempre sorria Valentin!" É até simples quando não se está arrancando as tripas de alguém.

Passar dois anos no campo de batalha faz com que homens criem certos laços de amizade, ao menos é isso que Valentin percebia. Manterem-se unidos, beber até cair e copular com as ovelhas que encontravam pelo campo, eram uma maneira de passar o tempo. Valentin não era muito adepto à prática, às vezes ficava com dó ouvindo o quanto elas berravam, mas as segurava para um guerreiro ou outro quando insistiam. A boa convivência se resumia em uma troca de favores que fazia toda a diferença e devia ser respeitada.

Entre uma batalha e outra, Valentin se escoava para o meio do mato, distante de todos. Entre as árvores, onde o ar era úmido e pesado, forneciam o clima que procurava quando queria ficar só. A introspecção era uma artimanha que se permitia sempre que podia. Olhar para dentro de si, sentado em troncos largos e caídos no meio da mata, o levava direto ao seu conforto, como se estivesse em seu próprio lugar especial para se reencontrar.

Numdesses momentos veio à lembrança seu pai. Ele o amava, "mas o que era amor?",questionava-se. Tinha sempre receio de ter errado com sua família; em certosmomentos, queria voltar atrás e poder fazer tudo de novo. Se não tivesse longede casa por tanto tempo, talvez essa ainda fosse uma possibilidade. Porém, se oenviaram para o serviço militar por causa desse erro, que com ele permanece, éporque provavelmente desde os dez anos eles não o queriam mais por perto.

Malakoi Desviado - *DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora