Tarot

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Partiram logo cedo no outro dia. Valentin organizou alguns de seus homens de confiança para que os acompanhassem. Eirian solicitou também a presença de Vicar, um senhor careca de meia idade que há anos servia o reino como um dos melhores escribas, para, ao seu lado, tomar nota de tudo que fosse necessário. Nesse momento, ainda meio que rabugento e descontente o príncipe, devia avaliar quais recursos seriam necessários para reerguer o reino destruído.

No caminho para Tarot, vestígios da aniquilação. Corpos em decomposição eram um prato cheio para animais selvagens que procuravam por um banquete e eram atraídos pelo cheiro pútrido dos mortos. Eirian notou espólios que deveriam ser coletados o quanto antes. De fato, estava surpreso por ainda restar alguma coisa ali que não tivesse sido saqueado pelos soldados, ou pelos selvagens e outros reinos.

─ Vicar, a primeira coisa que precisamos fazer é reunir homens para limpar este local, enterrar estes corpos podres e recolher essas armas. Olha quanta coisa ainda há por aqui. Me pergunto por que meu pai não enviou uma expedição muito antes.

─ Concordo, senhor. É sorte as armas ainda estarem aí depois desse tempo todo. Sem dúvida levarei esses pontos ao conselho. Deveremos ter mais cuidado nas próximas expedições, ─ olhou de esgueiro para Valentin, ─ Ao menos eles recolheram o ouro... E estas tendas senhor?

─ Tão podres quanto estes corpos. Acho que não prestam para mais nada.

─ Vossa alteza, parece que a entrada da cidade também está destruída, ─ observou Valentin ao se aproximarem dos muros que cercavam a cidadela. ─ Nada sobrou da ponte de pedra.

─ Verdade. E este lago que tem em volta não parece ser nada amigável. Acho que não tem como passarmos. Esperem. Aquilo são estacas dentro da água?

─ Sim, meu senhor. Tarot era conhecida pela segurança. Essas estacas eram trocadas de tempos em tempos, antes que pudessem apodrecer. Penso que estas ainda fariam um estrago em qualquer um que caísse ali dentro, ─ completou Vicar.

─ Eu consigo atravessar, senhor, ─ disse Valentin.

─ Valentin, não acho que alguém aqui saiba nadar. Você sabe? Digo, se precisar de ajuda, alguém teria que pular.

─ Isso se ele conseguir nadar ali, ─ lembrou Vicar.

─ Eu passo sem problemas. Sei nadar, e o caminho até o outro lado é curto, ─ confirmou, ignorando as lembranças de água salgada e do mar impiedoso que invadiram sua mente.

─ Mas veja essas estacas, e essas pedras afiadas... Você percebeu as pontas delas para fora da água? ─ insistiu Eirian preocupado.

─ São como agulhas, não são, senhor? Lindas, uma obra de engenharia incrível para um povo tão rude, descrente.., ─ salientou Vicar, ─ Podem perfurar Valentin em instantes.

─ Vamos torcer para que não seja hoje, ─ suspirou o guarda e pulou no lago.

O coração do príncipe palpitou. Vicar ergueu a sobrancelha ao notar a destreza de Valentin, que se esquivava com facilidade das estacas dentro da água. Ao se aproximar das pedras da ponte, destruída, percebeu que formavam um apoio quase perfeito, um caminho que o levava até a entrada com maior facilidade. As mesmas pedras agora serviam de passagem até o restante da ponte. Torcia para que estivessem estáveis.

Valentin tinha uma vantagem extra graças aos reflexos rápidos de seus músculos, por isso o risco de deslize eminente pelas mãos molhadas não o sabotaria tão facilmente. O corpo molhado usava os fortes braços como balanço, já as pernas encontravam agarras nas pontas das botas que, ao se firmarem, impulsionavam o corpulento guerreiro para cima. Do outro lado, Eirian e Vicar assistiam, ofegantes, a bravura do guerreiro que desafiava a sorte.

Chegando ao topo, jogou os cabelos para trás para se livrar da água e foi em busca de algo que pudesse facilitar a entrada de seus companheiros. Ao encontrar uma pilastra de madeira, esforçou-se ao máximo para tirá-la do lugar, mas não teve sucesso.

─ Não dá, vou procurar outra coisa, ─ admitiu.

Uma corda espessa abandonada próxima a grande porta de madeira parecia ser a solução. Em busca de mais flexibilidade Valentin tirou o gibão e a camisa que vestia por baixo, agora seu tronco descamisado exibia músculos definidos e torneados que junto, às cicatrizes, acrescentavam fascínio ao corpo do guerreiro. Agarrou a corda e girou-a no ar, buscado impulso para o arremesso: seu movimento havia de ser preciso, ou ele teria que descer e fazer tudo outra vez.

─ Aí vai!

Os dois soldados a pegaram e a amarraram num dos ganchos de metal que ainda perduravam do outro lado da ponte.

─ Ficou firme? Vou subir, ─ alertou o príncipe.

─ Meu senhor, talvez deva deixar um dos soldados tentar primeiro, ─ sugeriu o escriba.

─ Eu consigo, Vicar.

Eirian não sabia nadar, e Valentin certamente estava atento ao príncipe, que se rastejava para atravessar.

O príncipe não havia imaginado o quanto a corda balançaria. A mistura de medo com o esforço fazia o coração do jovem querer sair pela boca enquanto seu corpo bambeava. Realmente, talvez teria sido uma ideia melhor se um dos outros fossem primeiro.

─ Está quase lá, ─ gritava Valentin

─ Não minta, Valentin, ─ respondeu Eirian com bom humor, enquanto chegava na metade.

Se arrastar pela corda, como uma minhoca, demorava mais do que imaginara para chegar do outro lado e, a cada bambeada uma respiração mais tensa. O vento não parecia querer ajudar quando atingia seu corpo de surpresa. Faltando pouco menos de um metro, o balanço constante fez a corda soltar-se. Vicar soltou um grito afeminado para o homem de meia idade que era. O coração de Valentin disparou ao ver o corpo do príncipe cair como um pêndulo desgovernado até as rochas, seus pés tocaram a água e retraíram-se imediatamente ao notar que estava prestes a ferir-se em uma estaca protuberante. As mãos do jovem, agora molhadas com suor frio, estremeciam por sustentar todo o peso do seu corpo enquanto tentava se estabilizar.

─ Eu vou te puxar, ─ avisou Valentin, se apoiando estrategicamente nos músculos das pernas e puxando a corda.

Enquanto Eirian escalava, a corda gradualmente se estabilizava e, quando finalmente os cabelos claros do príncipe estavam visíveis para o guerreiro, Valentin enrolou a corda no braço direito colocando toda confiança em seus músculos.

─ Aqui, segure minha mão, ─ ofereceu o soldado.

Eirian agarrou-lhe o punho esquerdo. Confiou na força do guerreiro e soltou da corda, continuando a escalada nos braços de Valentin.

─ Obrigado, ─ agradeceu, ainda nos braços do guarda, fitando-o nos olhos.

Paraos dois, juntos, aquela pilastra não seria mais problema. Empurram-na comcuidado até que ela alcançou o outro lado do fosso e os soldados puderamestabilizá-la e finalmente atravessar.

Malakoi Desviado - *DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora