Em Casa

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─ Hoje é dia de festa! Soldados, sejam bem-vindos ao seu lar novamente! ─ gritava o rei Maximus Ergomnes em frente às grandes portas que separavam o seu reino dos campos selvagens que estavam rodeados, enquanto a multidão de sobreviventes da guerra que caminhavam com certa dificuldade para dentro da pequena cidade, ─ Chamem os monges, cuidem dos enfermos, se lavem e se sirvam com a comida quente que os espera.

Valentin transportou os feridos para enfermaria e sentou num banco de pedra branca para assistir o nascer do sol, que já iluminava os pingos da garoa fina que caíam naquele amanhecer vitorioso. Mulheres e crianças estavam em prantos, de tristeza ou felicidade; algumas agora sozinhas para sempre. Muitos ali não tinham quem abraçar, inclusive Valentin, que refletia sobre não ter ninguém ali por quem realmente sentia algo de verdade.

Durante a guerra, o que mais lhe vinha à cabeça era o quanto sua vida era solitária. Sabia que, por levar uma vida de guerreiro, isso não mudaria tão cedo. Seus dias se resumiam em ouvir e executar ordens, e estar pronto para morrer. Acreditava que os homens que tinham a coragem de construir uma família nessas condições eram extremamente corajosos. Admirava-os. Precisava de muita temeridade para pôr tudo em jogo por causa do prestígio que a guerra pode dar a um homem. Apesar de o seu caminho ter sido trilhado como guerreiro, Valentin se pegava vez ou outra fazendo planos que incluíam uma família, que neste momento não passavam de esperanças.

Naquele momento de emoção, o mais próximo da felicidade era para ele ver o contraste da terra no mármore branco que circundava o jardim no centro da cidade. As flores amarelas respingadas de neve cheias de vida eram tudo que ele precisava ver para se sentir em casa.

Solaire tinha um salão enorme, na verdade, a sala real era colossal para o tamanho da cidade. O rei gostava de comemorar ali. O local abrigava todo o batalhão de soldados e uma equipe gigantesca que preparava a grande festa da vitória. As mulheres cozinhavam para os maridos, as crianças cantavam, os cachorros corriam atrás dos gatos numa atmosfera de alegria.

Comida era o que ouriçava o povo. Um banquete como aquele em dois anos? Era tudo que precisavam. Muito vinho era servido, e muitos bêbados apareceram no ápice do evento, o exato momento que o rei Maximus julgou ideal para fazer um anúncio.

─ Povo de Solaire! ─ atrás do rei, os seus sete conselheiros ergueram a cabeça para acompanhar o cálice que Maximus levantava enquanto enchia profundamente os pulmões de ar.

Como se fosse um ato dramático, olhou para todos profundamente. O silêncio era quebrado apenas pelo tilintar da cruz que batia contra uma chave no peito do rei, esta que por vezes ele se agarrava fortemente quando queria ressaltar um ponto, como se aquele amuleto pudesse enfatizar as palavras que saiam de sua boca.

─ É com muita alegria que festejamos não uma, mas duas vitórias essa noite! Conquistamos mais uma vez as terras dos impuros. Todas as noites, falo com Cristo e, mais uma vez, tive certeza de que estamos no caminho certo! Tolerar que o reino dos céus seja devastado por falsos ídolos não é e nunca será atitude do povo de Solaire! ─ a multidão o ovacionou enquanto ele ergueu a taça e bebeu um gole, ─ Não bastasse o sucesso do nosso povo, hoje meu amado filho, primogênito, sangue do meu sangue e sucessor deste trono em que me sento, depois de anos de dedicação e aprendizado em terras estrangeiras, retornou para nossos braços! Hoje somos mais fortes, mais inteligentes e perspicazes contra aqueles que querem destruir o plano divino! Annuit coeptis! ─ bradou seu jargão como se estivesse no campo de batalha. Gostava de usá-lo depois de um grande feito em nome do Senhor para lembrar que "Deus aprova nossos feitos".

As cortinas de veludo se abriram lentamente, puxadas por duas mulheres negras, revelando aquele jovem de pele branca e cabelos claros. A multidão urrou! Se passaram sete anos desde que Eirian Ergomnes partira para estudar no oriente e agora, com 17 anos, voltava para casa. Sobreviveu o intenso treinamento militar e dominava outras línguas e ciências, o que seria essencial para desenvolver o comércio, a troca e conquista de novas mercadorias, oriundas das novas terras entre os reinos, que Maximus chamava de "prometidas por Cristo".

Eirian era a aposta mais alta que Maximus havia feito na vida. Sabia exatamente o caminho que seu filho iria trilhar, o que ele iria fazer, se iria ou não batalhar, onde iria desbravar, quando iria se casar e com quem. Juntos, iriam transformar Solaire na maior potência do mundo, onde nada e nem ninguém os poderiam deter. Aliás, transformar Solaire na maior potência do mundo era o discurso mais inflamado que saía da boca do rei. A motivação do povo era construir a casa de Cristo.

─ Contemple seu novo chefe, ─ sussurrou o general nos ouvidos de Valentin, apontando para Eirian entre as cabeças embaçadas à sua frente.

O príncipe vestia calça vermelha escura, contrastando com os traços orientais do gibão de couro preto fino. Seus músculos eram torneados até demais para um rapaz de 17 anos, o que Valentin não podia deixar de notar. De relance, aquilo tudo parecia muito sensual e instigante. "Deve ser a bebida," ─ pensou e desviou o olhar para as tetas das negras que seguravam a cortina.

─ E isso não é tudo! ─ continuava Maximus, imponente com seu timbre grave, ─ Todas as minhas concubinas estão à mercê dos soldados mais bravos deste reino esta noite! Valentin! ─ Berrou ele, ainda mais alto, ─ aproxime-se!

Sem como negar a ordem real, Valentin se levantou, um pouco envergonhado, e foi se aproximando da plataforma do trono, ovacionado pelos colegas ao longo do caminho. As concubinas saíam lentamente por detrás das cortinas com seus peitos à mostra, algumas vestidas com seda fina que mal escondia seus corpos esculturais, transformando-as em vitrines do sexo. Todas jovens e de diferentes etnias, mas nenhuma dessas era pra Valentin, que subiu no palco e se ajoelhou.

─ Vossa Majestade.

─ Meu filho Valentin, protetor desse reino, não se levante.

O rei se virou, dirigindo-se para detrás da plataforma. Valentin permaneceu ajoelhado e tudo que ele podia perceber era o som da capa real vermelha se arrastando naquele assoalho. Quando o rei retornou, Valentin notou que ele segurava um pequeno broche nas mãos.

─ A partir de agora, você é líder da Guarda Real e sua missão é proteger a vida de meu filho, príncipe deste reino e futuro detentor do trono, Eirian, ─ o rei fincou o broche no ombro de Valentin, ─ Tragam a virgem, ─ o guerreiro olhou de esgueiro para Koldo do outro lado da sala, imaginando o seu concorrente com os olhos em fúria. Mais uma vez, Valentin havia sido considerado superior a ele.

Entre dois escravos negros, se via uma jovem ruiva de pele clara e de rosto pintado gentilmente por sardas. Hoje era o dia que ela fazia seu décimo primeiro aniversário. Apresentou-se timidamente à multidão com passos curtos e lentos enquanto segurava as mãos na frente do corpo. Vacilava na tentativa infértil de sorrir naturalmente sem mordiscar os lábios. Era uma honra para sua família servir ao rei e à Guarda Real. Foi cedida pelo pai de bom grado em troca de bons relacionamentos com o alto escalão.

─ Valentin, que esta jovem lhe traga força e equilíbrio quando precisar. Ela é sua e estará te esperando nos seus aposentos esta noite.

Umavirgem para um guerreiro era um presente para poucos. Apenas seletos, que sedestacavam, recebiam tais honras. Acreditava-se que dormir com uma delasdeixava o guerreiro mais forte, mais jovem e com maior capacidade de realizarsuas funções, como que se ela o nutrisse e pudesse reciclar as energias dohomem com quem dividia a cama. Este, por sua vez, tinha sua escolha de mantê-lavirgem para ter o tal benefício ou usá-la como sua amante, coisa que os pais dajovem torciam para acontecer. Quem sabe não teriam a filha grávida e mulher deum guerreiro de prestígio dentro de Solaire?

Malakoi Desviado - *DEGUSTAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora