Nova Era - Depois Da Festa

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Eu suspiro antes de mais um dia de trabalho.
É sempre a mesma coisa, todas manhãs.
Eu gostaria de poder participar das festas da matriarca, mas sou só um servo que limpa o salão. Pelo menos recebo três refeições por dia e um salário, além de que os adereços de prata em meu pescoço e punhos são para me proteger e não para me prender.

"Poderia ser pior..."

Eu digo enquanto vejo o que sobrou de um tritão com algemas douradas, o pescoço rasgado a dentadas, os olhos esbugalhados de peixe morto e um corpo totalmente seco com o dorso delgado aberto com o coração exposto e murcho.

"Bem pior..."

A primeira coisa que eu faço é fechar as cortinas, apesar de que não há sol em Ladjermeniun nós preferimos nos precaver. Então os meus colegas mais fortes cuidadosamente carregam nossos mestres até seus devidos aposentos, com exceção da própria matriarca que já está no trono, suja de sangue, vinho e outras coisas, com a cabeça decepada de algum cara no colo e uma garota elfa com pele cinza escuro como fumaça caida com a cabeça no ombro dela.

Me aproximo delas, coloco a cabeça to homem em um balde e afasto a garota. Ela geme um pouco incomodada por eu perturbar seu sono e vejo que os dentes estão mudando.
Sortuda, eu mau posso olhar nos olhos dos nossos mestres e agora você é um deles. Nesse caso tenho mais cuidado em à repousar no chão invés de simplesmente jogar pro lado como pretendia fazer. Neste lugar só tem direitos de verdade quem tem presas salientes e bebe sangue, do contrário somos todos parte da ralé em diferentes níveis. Eu por exemplo estou acima dos escravos que servem apenas de alimento e força de trabalho pra eles, mas em tempos de crise todos nós que não somos vampiros nos tornamos parte do "rebanho" deles, não importa o quão bem os servimos.

A matriarca não vai acordar até as 18 horas, ou ao menos anão conheço nada que acorde uma uma vampira anciã de seu sono, mas uma rainha precisa estar sempre bela e nobre. Eu e mais algums servos a carregamos para o salão de banho onde outras servas a despem, lavam seu corpo e penteam seu cabelo enquanto ela dorme.
Não sei se ela realmente dorme, alguns mais ousados já testaram quanto tempo ela aguenta embaixo da água e tudo que aconteceu foi ela inchar um pouco.

Após isso, elas vestiram a Rainha com um vestido novo e foram limpar e costurar o antigo. Eu continuo a limpeza do salão esfregando o chão com álcool, uma coisa que aprendemos com os renascidos de outro mundo para evitar doenças de sangue, e enquanto esfrego me deparo com uma outra moça elfa de cabelos e pele brancos como neve caída no chão, porém acordada. Ela está segurando o braço decepado de alguém e eu ofereço o balde para ela jogar fora, a moça se senta e coloca o braço decepado lá dentro e dá um pequeno riso.

"O que foi?"
"Nada, eu só não esperava que um dia estaria aqui. Nem que estaria fazendo as coisas que fiz."
"Nem eu... O salão da matriarca... Ouvi histórias desde pequeno sobre como era lindo e opulente, mas agora o que faço é limpar ele."
"Acredite em mim, não sendo um vampiro, é melhor estar aqui depois da festa."

Olho para a pilha de corpos na carroça de madeira que um servo orc está prestes a levar daqui para alimentar os carniçais.

"Eu imagino..."
"Heh. Não, você não sabe nem metade. Tenta advinhar o que aquela maluca fez com isso."

Ela aponta para o braço no balde, eu faço uma cara de espanto e ela confirma com um aceno.

"Mas... Como você veio parar aqui e não foi transformada ainda?"
"Longa história curta. Eu virei a favorita dela. Se ela me matar ou me converter, não vai mais poder beber de mim."
"Ah... Eu entendo."

Eu já vi a matriarca ter outros favoritos, geralmente acabam na vala com os outros depois que ela se cansa deles. Mas essa aqui, parece diferente de algum modo.

Continuo a esfregar o chão e recolher partes de pessoas que não sobreviveram a festa da matriarca, a elfa de cabelo branco parece estranhamente interessada no balde.

"Você não é necro...?"
"...mante. Sou necromante."
"Ah. Menos mal."

Mas considerando que meus mestres são todos mortos-vivos e o que aconteceu aqui, ela não é apenas necromante agora.
Mas acredito que ela não quer comer isso.

"Se quiser pode usar, nós só jogamos isso fora ou alimentamos os carniçais."
"Deviam usar de adubo."
"Adubo?"
"Sim. Veja bem, as coisas acontecem em um ciclo. Elas nascem, crescem, morrem, um necromante ou outra coisa pode até interferir nessa última parte, mas em algum momento morrem de novo e retornam a terra da onde surge nova vida."
"Uau! Eu nunca vi por esse lado."
"Sente-se aqui comigo, eu gostaria de conversar."

Ela não possui algemas ou coleiras nem prata nem de ouro, não é uma serva ou escrava, então alguém como ela pedir para alguém como eu sentar ao seu lado é uma grande honra que me enche de alegria. Vendo mais de perto vejo que ela curou seu próprio pescoço várias vezes, uma praticamente de magia branca aqui é uma loucura, mas ouso dizer que a matriarca é mesmo louca.

"Eu já sugeri isso para Eleanor, mas ela não se importa em cultivar vegetais, principalmente porque eles precisam de luz do sol."
"Você chama a matriarca pelo nome?"

Ela riu levemente.

"Somos melhores amigas, eu acho. Mas continuando... O que Eleanor não percebeu é que ela também é parte do ciclo. Se vocês usarem os mortos das festas como adubo vão enriquecer o solo e photomancia sob constante vigília para cultivar trigo e milho, então vocês vão ter alimento melhor e serão mais saudáveis, logo seu sangue será melhor para eles consumirem."
"É... Eu não gostei da última parte."
"É um ciclo natural. Em algum momento até seus mestres vão morrer e se não for pelo sol ou luz divina, vocês podem usar até eles de adubo também."
"E você? Vai virar adubo também?"
"Eu não. Eu vou viver e reinar para sempre."

Eu riu e eu ri também, mas então a elfa agarrou meu pescoço com as mãos, eu tento me soltar desesperadamente! Bato nos braços, ombros e rosto, mas ela não me solta!

"Eu não vou acabar em uma vala, cemitério ou servindo de adubo como todos outros! Nem vou ser escrava zumbi de outro necromante! Eu serei eterna, mestra de meu próprio destino! Eu sou Verata Yistora e juro isso pela sua vida, humano!"

O ar não chega em meus pulmões, meu cérebro não recebe o sangue que precisa, meus olhos se reviram enquanto tento desesperadamente me soltar de qualquer jeito, mas só o que se liberta é o conteúdo da minha bexiga. A este ponto já não sou eu que estou fazendo isso e sim o que sobrou do meu instinto de sobrevivência enquanto minha alma já separada do corpo observa de fora ela tomar minha vida diante de meus olhos etéreos e um homem alto e magro de cabelos pretos e roupas amarelas aparece atrás dela, ele está olhando para minha alma e de algum modo, sinto que já passei tanto tempo em sua presença que não é alguém estranho.

A elfa assassina olha para mim também, não para o "eu" que costumava ser e agora não passa de mais um cadáver no salão da matriarca, mas o "eu" que sou agora, mais um fantasma assombrando esse lugar após uma morte violenta.

"Eu vou ser a mais poderosa lich que este mundo já conheceu, você foi o meu primeiro passo e lhe agradeço por isso. Usarei bem o seu corpo."

E assim minha vida foi tomada em um juramento profano de uma futura lich, ela reergueu meu corpo morto com uma energia acinzentada, e meu cadáver ambulante a carregou para fora do salão porque ela não conseguia andar.

Eu escuto um barulho que tira minha atenção do mundo material, quando me viro vejo todos os horrores etéreos resultantes da depravação e morte que aconteceu aqui, amálgamas de almas penadas corrompidas pela dor e sofrimento, monstruosidades disformes consumindo a si mesmos, espíritos daqueles que enlouqueceram no processo rindo e dançando e lamurias chorando e lamentando pela eternidade, com uma grande massa com o peso de todas as vítimas da matriarca despojada sobre seus ombros enquanto vários incubi, succubi e outros demônios estão reunidos ao seu redor, dormindo em seu colo, agarrando suas mãos e a protegendo de todas essas outras assombrações de tanto que a amam por suas ações nefastas. Eu flutuo para longe daqui antes que as monstruosidades me notem e me caçem também, sigo na direção da futura lich, se eu sou sua primeira vítima, então vou assombra-la pela eternidade.

Contos De NaestriaOnde histórias criam vida. Descubra agora