Nova Era - Sobre Feudos E Sangue

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"Vossa alteza, nós precisamos conversar."
"Hmm... O que foi Veratinha?"

Já faz três anos desde que entrei na sociedade dos sanguessugas e ganhei notoriedade suficiente para subir na hierarquia até poder conversar casualmente com a matriarca em seu próprio quarto.
Ela inclusive arranjou vários apelidos idiotas para mim.

"Eu acredito que suas... Cerimônias..."

Olho para o corpo pendurado por um gancho, encantado para não para não parar de sangrar depois de morrer.

"...Estão indo um pouco longe demais."

Ela riu alto enquanto segura a taça de sangue, segura de que só estamos nós duas aqui. Nem mesmo os Masakh ousam espionar a anciã de outra linhagem.

"Isso é por causa do braço?"

Más lembranças me atingem, sinto a a dor no quadril só de pensa. Ela até quebrou alguns ossos na ocasião, felizmente eu sou uma necromante e pude reconstituir meus ossos. Limpo a garganta educadamente para me recompor.

"Não. Claro que não. Vamos esquecer isso por favor. É sobre os mortais."
"Você inclusa."
"O rebanho, eu digo."

A rainha se espreguiçou preguiçosamente e desinteressada enquanto deita na cama, então deu um gole na taça de sangue deixando escorrer pela bochecha sem se preocupar.
Eu tenho uma teoria de que eles bebem mais porque querem do que porque precisam.

"Vossa alteza, o que você me diz sobre a qualidade do sangue que bebe atualmente?"
"Bom. Mata minha sede e acalma minha alma até a Noite Rubra."
"Mas e se pudesse ser melhor? Se o sangue que vossa alteza consume fosse o melhor entre os melhores, como o vinho que acredito que bebia em sua existência anterior."

Ela faz um grunhido negativo que pouco se parece uma palavra em língua comum ou abissal.

"Sangue é sangue, não fica melhor conforme eles envelhecem."
"Não, não, perdoe-me dizer mas vossa alteza não está vendo o quadro todo."

Ela levantou a sobrancelha com um olhar dúbio, não sei se está interessada ou se sentiu desacatada.
Se necessário, eu irei utilizar meu plano B.

"Pense no vinheiro, não no vinho pronto. Para fazer um vinho melhor, precisam cultivar uvas melhores."
"Então o mesmo serve para mortais... Você é um gênio Verata!"
"Obrigada, mas não sou digna de tal elogio."

Me curvo educadamente e ela despensa as formalidades com um gesto de mão.

"Você tem minha atenção."
"Isto pode levar alguns anos, porém acredito que você tenha tempo para isso. Precisamos organizar os feudos que estão sobre domínios de sua prole para que sejam mais do que um território de caça. Oras, não somos Dýrið correto?"
"Você tem razão, estive preocupada com o comportamento recente de neófitos rebeldes aprendendo com estes selvagens."
"Façamos o seguinte: Daremos à alguns mortais uma posição de servo a mando de duques. Eles poderão ter escravos* e uma porção do que produzirem para se sustentar e os senhores feudais devem garantir que eles tenham uma vida saudável. Continuamos a utilizar os produtos produzidos para comércio com outros reinos e os escravos para alimentar ghouls e membros de outras linhagens."
"Interessante... Mas o que garante que não tentarão nos enganar?"
"Elfos."
"Não me leve a mal Vevê, mas sua espécie é famosa enfiar uma faca nas costas dos próprios pais. E digo isso sobre plebeus!"
"Não, eu também não confio em um dos meus. Eu me sinto mais segura numa sala trancada com uma matriarca vampira que já ceifou incontáveis vidas do que com uma criança svartálf com um graveto."

Nós duas rimos da situação.

"Mas voltando ao assunto, eu quis dizer os álfar e outras raças mais controláveis."
"Ah sim! Mas não seria prejudicial a eles viver aqui longe da luz do sol?"

Eu cheguei ao ponto que queria.
Retiro de minha bolsa um mapa que mostra o mundo com seus três continentes e estendo sobre a cama próximo a rainha, então aponto com o dedo para a região onde fica o Império Kavicta.

"Você tem alguns infiltrados aqui não é mesmo?"
"Sim... Eu entendo onde quer chegar. Podemos utilizar estes infiltrados como mais do que espiões, eles ficam encarregados de feudos e deixam seus servos cultivando e criando animais, doando sangue regularmente."
"Precisamente vossa alteza."
"Mas você disse que era sobre as cerimônias, correto?"
"Sim. Nós precisamos deixar mais servos vivos para trabalhar nas fazendas e assim produzirmos mais produtos. E talvez estabelecer algumas regras de conduta básicas."
"Mas a regra é não ter regras!"

Nossa, ela se exaltou agora.

"Vocês já possuem algumas regras não escritas. Animais e crianças não entram por exemplo."
"Claro! Até eu tenho limites."
"Sim, eu me lembro que explodiu a cabeça daquele homem que insistiu só com um olhar."
"Impressionante não acha?"
"Sim, deveras. Mas voltando ao assunto, eu gostaria de pedir para que preserve pelo menos 40% da população de mortais."
"40%!?"
"A Noite Rubra acontece a cada ciclo. Novos membros do rebanho nascem no mínimo a cada 7 ciclos, se estivermos falando de gnomos. Para humanos são 9 ciclos enquanto anões e drakos é 1 ano. E a maioria só está apto para trabalhar de forma eficiente aos 14 ou 15 anos."
"Hm..."
"Se quiser um rebanho que se reproduz tão rápido quanto vocês os matam, vamos ter que usar goblins e mitzes."
"Ugh! Não, que nojo! Prefiro beber sangue dos meus próprios filhos do que beber de um goblin!"
"É o que vai acontecer em alguns anos se não tomarem cuidado. Ao longo de milhares de anos, se os vampiros saírem de controle e converterem todas outras criaturas, do que vocês vão se alimentar?"
"Sim..."
"É por isso que a Noite Rubra, execuções e caçadores são importantes. Morte é necessária. Senão, vamos acabar em uma catástrofe sem tamanho."

Escuto a voz da matriarca atrás de mim, sua velocidade é tão grande que nem vi ela se mover.

"Eu entendi o que quer dizer e você tem razão. Por isso é minha favorita."

A rainha morde meu pescoço, as substâncias sedativas da saliva vampírica me roubam a consciência...

*****

*Só um disclaimer: eu sou terminantemente contra a escravidão de qualquer forma. Esta história se passa em um mundo fictício, com uma sociedade fictícia que não está respeitando os valores morais de seu próprio mundo porque a escravidão foi abolida no continente inteiro por um tempo (vide "A Rainha Eterna"), mas depois que a rainha demônio deixou o posto, eles voltaram a fazer isso por baixo dos panos até que nos dias atuais ("Outra Light Novel Com Nome Grande" em diante na cronológia) já tem grandes redes de contrabando e tráfico e fazem tudo para Kaida não descobrir. Em minha visão, vampiros de Naestria são essencialmente parasitas e predadores egoístas e ambiciosos, portanto cada linhagem utiliza os meios que possui para manter sua dominância (política, comércio, religião, controle de informações e violência) e através disso usar as ferramentas que têm para conseguir mais sangue (escravidão, emboscadas e caça).
Se você acha que tá tudo bem uma pessoa ter domínio sobre a outra ou abusar dos outros igual esses vampiros pensam, você tem mais é que se ferrar mesmo.

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