Pietro vislumbrou as primeiras luzes do dia. Enquanto o carro seguia o seu caminho, ele voltava o olhar para a janela fechada, pela qual a paisagem ia se locomovendo com parcimônia. Ao seu lado a esposa, Bruna, que vez ou outra lhe dirigia olhares certeiros. Ela pensava entendê-lo com ninguém, afinal, é isso o que se espera de alguém com quem se dividiu os anos. Porém, para Pietro, os anos foram assentando em ambos uma espécie de máscara que dificultava o reconhecimento de seus sentimentos um pelo outro.
Miguel vinha no banco de trás, o olhar vago e o corpo endurecido pelo cansaço da viagem. Seu olhar em direção ao amigo Pietro demonstrava emoções conflituosas, como se quisesse dizer algo, mas não soubesse o momento. As imagens do Vale do Café em pleno 2018 rendiam sensações diversas; para Pietro, aquele lugar despertava antigas rusgas, mas não havia outra saída. Assim como não existia outra escolha além de trazer Miguel junto ao casal. Se perto deles já conseguia aprontar das suas, sozinho estaria completamente perdido.
"Amor, tem certeza que eles estarão em casa?"
"Sim, sim" Respondeu ele para a esposa.
Bruna tentou arrumar a bagunça do porta-luvas.
"Espero que dona Nicole ainda saiba fazer aqueles bolos. Oh. Desculpe."
Ninguém prestou atenção no que Miguel disse. Este foi um dos poucos diálogos que os três trocaram a viagem inteira. Pietro apertou as mãos no volante e respirou fundo. Suas emoções eram tão discretas que teve certeza que nenhum dos dois passageiros reparara em seu trejeito nervoso. Seu passado encontrava-se cada vez mais próximo. O rapaz tampouco queria lidar com ele.
x-x-x
A casa ainda era a mesma. Debulhada de lembranças, uma fachada calma e familiar que não deveria mais inquietar o filho pródigo. Mas inquietava. Quando o carro parou naquele lugar, Pietro demorou a descer. Bruna, no entanto, o fez voltar à tona, tentando fazer um gracejo com o seu nervosismo e os mecanismos do carro. Isso por que Pietro era mecânico - mas Bruna não se interessava pelos negócios, tampouco entendia de veículos. Pietro, então, desceu, fazendo força demais ao bater a porta. Giovani, o irmão mais velho, veio recebê-los na entrada, numa hospitalidade aconchegante.
"Pietro! Nossa, pensei que não chegariam nunca!"
Bruna iniciou o diálogo: "É que o carro parou no meio da estrada. Sorte que temos um mecânico na família." E relanceou um sorriso para o marido, que ainda trazia o olhar fixo para a casa. Ela disfarçou sua falta de resposta seguindo-o no seu campo de visão.
"Tem gente?" Perguntou Pietro num sussurro para o irmão. Falava a respeito da casa ao lado, que dava sinais de vida. Em verdade, as duas casas eram coladas uma na outra, mas até certo tempo só a de sua família era ocupada.
"Ah, tem sim. Um casal gente boa e mais o filho. Depois te apresento. Vamos entrando. Está um sol de lascar. Vamos, vamos. Deixa que eu pego as malas." Disse Giovani, fazendo um gesto enfático para que entrassem.
Quem observasse a cena sequer imaginaria que havia outro membro da família, até aquele instante nem citado. Mas lá estava ele, com a roupa do serviço, pronto para trabalhar como se nada estivesse acontecendo.
"Giovani, estou indo trabalhar. Não se esquece de falar com o Bosco, se ele vier aqui. Diz que o carro já está pronto. Qualquer coisa eu estou lá na oficina. Mas só me procura se for urgente."
Giovani, exasperado, colocou a mala na sala de estar. Observou seu pai, atônito.
"Não vai falar com o Pietro? Bruna e Miguel também vieram."
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Mais que o tempo
RomancePietro, um amargurado mecânico, retorna ao Vale do Café contra a sua vontade, após a vida em São Paulo ter tomado rumos que ele não havia planejado. Hospedando-se na casa do pai, com quem tem uma difícil relação, Pietro descobre uma porta que divide...