Três

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Pietro acordou empolgado para o seu primeiro dia como assistente na livraria de Délia. Quando levantou, o espaço de Bruna na cama se encontrava vago. Nem mesmo encontrou Giovani ou Miguel para dividir a felicidade. A essa hora, pelo menos sabia, o pai e o irmão deviam estar trabalhando na oficina da família.

O rapaz tomou um banho demorado e passou bom tempo se arrumando em frente ao espelho, tendo especial cuidado com o bigode que era sua maior vaidade. Enfim satisfeito, Pietro pôde caminhar para o trabalho. Observou que a chave do meio ainda o olhava do criado mudo e ele, incomodado, guardou-a na gaveta.

Sentindo-se o homem mais sortudo do mundo, Pietro encontrou com Délia saindo de casa com um beijo do marido e do filho. Vitor acenou de forma amigável, mas o pequeno Vinícius virou o rosto para a porta.

"Vini amanheceu do avesso hoje. Animado para o primeiro dia?"

"Muito! Eu estou o próprio Gene Kelly".

Délia riu. Os dois seguiram o caminho todo conversando. Délia abriu a livraria e logo passou algumas instruções importantes para seu novo assistente. A primeira tarefa do dia era catalogar as doações novas e organizá-las nas categorias das estantes. Délia cuidava do atendimento. O primeiro rato de livraria a chegar foi Rodrigo, que buscava uma dica de leitura para presente. Ele conversava com a amiga, vez em quando dirigindo um olhar para Pietro. Este, embora concentrado em sua tarefa, dava pontuais olhares de esguelha para o rapaz.

"Talvez eu precise de uma opinião nova em folha. Que tal se treinarmos os seus dotes nesse primeiro dia?"

Pietro derrubou a pequena pilha de livros que havia acabado de organizar.

"Minha nossa! Tudo isso é nervosismo? Calma! Vai lá atender o Rodrigo que eu cuido daqui."

Pietro entregou os livros caídos para Délia e seguiu na direção de Rodrigo. Se bem que era melhor que ela tivesse me deixado onde eu estava... Ele teve de disfarçar a angústia de atender justamente o homem que não saiu da sua cabeça desde a noite passada. Mas, sendo o mais profissional possível, engoliu em seco e fingiu costume.

"Hã... Qual tipo de livro você tem em mente?"

"É pra minha sobrinha. Queria um daqueles clássicos da coleção vagalume... Mas não sei qual dos livros é o melhor pra ela."

"É, o vagalume é muito bom pra quem está começando a ler... Olha, tem esse... Vem aqui. Quer vir aqui?" Pietro não conseguiu acreditar que falava todas aquelas coisas.

Ele foi à frente, auxiliando Rodrigo a se guiar pelos corredores de livros. Dava pra ver que Pietro levava jeito na função. Apesar de estar atrapalhado com as inúmeras sessões, conseguiu dar boas dicas e Rodrigo saiu dali com uma pilha de cinco exemplares diferentes para a sobrinha. Délia ficou impressionada.

"Meus parabéns, senhor Piê. Logo, logo vai estar melhor do que eu."

"Aí serei o Sherlock Holmes do seu Arthur Conan Doyle."

Rodrigo agradeceu o atendimento e deu um beijo amigável na bochecha da amiga. Olhou para Pietro, que talvez esperasse o mesmo agradecimento. Mas Rodrigo apenas assentiu e pegou a sacola de livros da sua mão. Seus dedos tocaram-se por um breve momento e o assistente de Délia teve certeza de sentir Rodrigo tremer como se tivesse levado um choque. Assim que ele foi embora, os outros dois comemoraram o sucesso do seu primeiro dia. O restante das horas transcorreu normalmente.

x-x-x

Pietro cumpria apenas um período de expediente, das 7h às 12h. Na saída da livraria, Délia disse não poder acompanhá-lo até em casa, pois passaria no trabalho do marido. Ele, então, seguiu seu caminho com a realização de um primeiro dia de trabalho bem feito. Seus pensamentos oscilavam entre essa conquista, Rodrigo e Bruna. Não esquecera de que havia dormido e acordado brigado com a esposa. A história entre os dois sempre fora tão complicada! Talvez sua relação significasse o que acontecia entre duas almas aprisionadas pelas vontades sociais. Sabia da infelicidade mútua, ao mesmo tempo em que existia um medo da parte dos dois de largar tudo depois de anos. Afinal, acabaram se acostumando a dividir a mesma frustração. Poucos casais são felizes à sua maneira - boa parte deles se iguala na infelicidade.

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