Quando a febre baixou, Pietro começou a dar sinais de estar acordando. Estranhou os lençóis. Estranhou a luz que vinha de um lugar diferente. Deu por si, e estava em outro quarto.
"Pietro. Que bom que acordou! Como se sente?"
"Délia... Um pouco tonto e com dor de cabeça. O que aconteceu?"
"Você ficou preso no galpão e pegou toda aquela chuva. Júlio te trouxe ardendo em febre, delirando. Você está na minha casa."
Pietro franziu o cenho.
"Júlio?"
"Sim, vocês se encontraram ontem."
A memória aos poucos foi retornando. O galpão. O homem que o salvara. A chuva. Seus delírios. Então, aquele não era o abraço da morte? Tudo havia sido real? Pietro sentou-se na cama, a cabeça pesada.
"Délia, quem é esse Júlio?"
"É um amigo meu, de anos. Veio passar um tempo aqui. Você deve conhecê-lo da orelha do livro que eu te dei. Ele é o autor de O Pacifista."
"Oh, eu ainda não li. Délia, eu o conheço de outro lugar..."
"Que outro lugar?"
"Délia, ele é o Luccino. O meu Luccino."
Ela respirou fundo.
"Ele é o Luccino da lembrança?"
"É ele. E eu o beijei..."
Délia tapou a boca com as mãos, ou para enfatizar o susto, ou para esconder o sorriso.
"Você o beijou! E como foi?"
"Foi... Lindo. Foi um beijo de amor. Eu estava beijando Luccino."
Délia permaneceu chocada. Em seguida, Ricardo e Júlio entraram no quarto. Era ele, sem nenhuma dúvida. O mesmo olhar de bondade, a falha na sobrancelha, os cabelos volumosos, o queixo bem talhado, o sorriso sincero e vasto. Ricardo, pelo contrário, com uma carranca de quem não queria ter acordado.
"Como está nosso paciente?" Perguntou Júlio.
Meu Deus. Até a voz é idêntica.
"Estou bem, obrigado." Uma resposta excessivamente formal para quem estava entrando em erupção por dentro. "Você... Hum, não me é estranho."
"Deve ser da orelha do livro" Ricardo respondeu, impaciente o bastante para permanecer no quarto. Retirou-se.
"Perdoe o meu marido. Não tem modos. Foi criado com lobos até que fui fazer uma expedição na floresta e ele se apaixonou por mim."
Pietro riu. Délia percebeu que era a hora de bater em retirada e inventou algo para fazer lá fora. Pelos minutos seguintes, Júlio e Pietro tiveram seu primeiro momento sozinhos. Júlio começou a encará-lo em silêncio, buscando memorizar seus traços sem a pressa da tempestade em seu encalço. Pietro fazia o mesmo, mas existia o sobressalto de ver o seu Luccino ali, parado tão perto e tão longe dele. Seu coração sacudia-se de emoções.
"Fiquei feliz quando cheguei aqui e vi um exemplar do meu livro na cabeceira."
"Sim. A Délia me deu um exemplar. Vocês são amigos."
"Há muito tempo. Vim aqui pesquisar uma história para um livro."
"É?"
"Sim. Luccino e Otávio, já ouviu falar?"
Pietro sentiu seus pelos do braço arrepiarem. Se já ouvi!
"Sim. Também me interessei pela história."

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Mais que o tempo
RomancePietro, um amargurado mecânico, retorna ao Vale do Café contra a sua vontade, após a vida em São Paulo ter tomado rumos que ele não havia planejado. Hospedando-se na casa do pai, com quem tem uma difícil relação, Pietro descobre uma porta que divide...