Júlio sentiu uma eletricidade que foi direto ao coração. No entanto, sabia que o rapaz em seus braços delirava. Chamava-o de Luccino. Ele só se deu conta do que havia acontecido quando se deparou com Ricardo ao seu lado. Até então, o tempo tinha lhe pregado uma peça, pois tudo, desde a procura por Délia até a visão de um desconhecido quase desmaiado numa ruína, pareceu ter acontecido num milésimo de segundo.
"Que diabos você está fazendo?" Ricardo esbravejou.
"Ele me beijou do nada, está ardendo em febre. Vamos levá-lo pra casa de Délia. Rápido!"
"O quê? Mas nem sabemos quem ele é, Júlio! Que ideia!"
"Não vou discutir com você no meio de uma chuva! Vamos!"
Júlio entrou no carro depressa. Pediu para que sua filha, Bel, fosse para o banco ao lado do motorista. Ele posicionou Pietro no banco de trás e ficou ao seu lado enquanto Ricardo dirigia a caminhonete. Acomodado o rapaz febril, Júlio e Ricardo arrastaram a moto até traseira do carro e seguiram a viagem.
A chuva não dava sinais de trégua.
"Luccino... Luccino..." Pietro continuava a delirar, os dentes batendo de frio. Júlio pegou um lençol quente em sua mala e cobriu Pietro.
"Quem é esse, papai? Um assaltante?" Bel, a filha de Júlio, perguntou. Era uma menina curiosa, negra e na faixa dos nove anos.
Júlio riu.
"Não, não é um assaltante, Bel. É um homem que estava desmaiado aqui perto. Vamos levá-lo junto conosco."
"Quem sabe se é um assaltante, filha? Seu pai abriga os outros sem se dar conta do perigo" Ricardo falou, contrariando o marido.
"Ricardo" Júlio interrompeu, sem paciência "Agora não".
"Agora sim. Que merda foi aquela? Você tava beijando outro cara?"
"Ricardo, você falou palavrão na frente da Bel, pelo amor de Deus."
"Você beijou ele, pai?" Ela retrucou. O marido olhou-o, questionador.
"Eu já disse, Ricardo, esse homem está delirando. Menos, bem menos."
Ricardo bufou. Júlio sacudiu negativamente a cabeça, impressionado com a capacidade do marido de ser insuportável quando queria. Na verdade, de uns anos para cá, ele se provava um intragável. Primeiro, porque se considerava um ótimo advogado e fazia pouco da profissão de Júlio: escritor. Quando se conheceram, Júlio começava as primeiras linhas de O Pacifista, seu maior sucesso. Até então, se concentrava em romances policiais de publicação independente. Mas O Pacifista, a história de dois soldados gays lutando juntos na guerra, rendeu-lhe bons comentários no cenário cultural.
Ricardo lidava com os livros como um passatempo. Nunca incentivava o sucesso do marido e achava a mais pura bobagem. O pior: queria sufocar em Bel, em verdade sobrinha de Júlio que este adotara com a ocasião da morte da irmã, toda e qualquer vocação "artística". Este era o objeto de maior conflito entre os dois, apesar de amarem a menina cada um a seu modo, e, algum dia, terem se amado mutuamente.
"Tem certeza que a Cordélia vai aceitar um estranho na sua casa?"
"Ela costuma ser mais generosa do que você é. A não ser que tenha mudado tanto de ontem pra hoje, quando a liguei para avisar que estávamos chegando. Do mesmo jeito que você mudou."
Ricardo nada disse. Júlio encarou-o pelo retrovisor, mas seu reflexo o enojava, por hora. O desconhecido tombou para seu colo. Começava a secar, mas alguns pontos do corpo continuavam encharcados. Pegou outra toalha e secou o que podia: não queria que o estranho pegasse pneumonia por sua causa. Eis sua surpresa quando Pietro, que continuava a delirar com o nome de Luccino, agarrou os quadris de Júlio, no abraço mais constrangedor da vida daquele escritor. Ricardo notou a movimentação pelo retrovisor, enciumado.
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Mais que o tempo
RomancePietro, um amargurado mecânico, retorna ao Vale do Café contra a sua vontade, após a vida em São Paulo ter tomado rumos que ele não havia planejado. Hospedando-se na casa do pai, com quem tem uma difícil relação, Pietro descobre uma porta que divide...