D E Z A N O S D E P O I S
2020
Consigo escutar o som dos pássaros cantando e isto me alerta de que já amanheceu. Adoro a sincronia das melodias e a suavidade que nenhum despertador tecnológico conseguiria ter. Sem a necessidade de abrir os olhos, sinto a presença de minha mãe na poltrona azul marinho de meu antigo quarto, velando meu sono. O aroma matinal que exalava do seu café era inconfundível e se impregnava por todos os cômodos da casa. Sempre que eu a visitava, seu mantra era posto em prática com perfeição. Porém, hoje acredito que ela gostaria de estar em qualquer lugar menos aqui.
- Ei, a senhora tá bem? – questionei, ainda debaixo do cobertor. Levantou-se em direção a mim e sentou-se na cama. – Te conheço, dona Foster. O que foi?
- Pensei que você fosse ficar mais tempo aqui comigo e com a sua irmã. Mal chegou e...é. – lançou um sorriso tímido, fazendo carinho em meus cabelos.
Nem penso e nem quero julgar sua atitude como algo egoísta. Mamãe havia cuidado de mim com inumeráveis mimos que um filho poderia sonhar em ter, e eu sempre fui recíproca da maneira mais correta possível a sua forma de criação (pelo menos acredito que tenha sido). Ok que não sou um parâmetro socialmente estável hoje em dia e também não fui a menina que tirava A em todas as matérias ou melhor, a que sentava na primeira fileira com expressão estudiosa e apaixonada pelo professor de Literatura, entretanto, durante meu crescimento, fui envolta por diversos belos adjetivos e tentei ao máximo não ser um peso morto ou uma adolescente problemática. De fato, nunca fui causadora de discórdia, evitava me meter em confusões e jamais confundi o modo libertário, da qual sou adepta, a atos de rebeldia. Não sou a mulher mediana que muitos sabotam mentalmente para que eu me torne, muito menos o ser humano excepcional que me cobro arduamente a ser.
- A vida tem sido corrida, né, mãe? – sorri ao expressar sussurrando. – Queria ter mais tempo livre, sério, mas desde que me mudei que a minha carga de trabalho tem aumentado demais, e eu também não posso recusar mais essa chance na minha carreira. Tipo, eu vou ser um dos artistas mais importantes do estúdio. Não é ótimo??
- Sim, óbvio! – um efêmero esboço de sorriso. Preocupada. Óbvio.
- Eu não vou sumir. Aliás, na primeira oportunidade que eu tiver prometo visitar vocês duas.
Espero que um dia ela compreenda totalmente que a oportunidade que tenho nas mãos é magnífica e que muitas pessoas sonhariam em concretizar. Creio que tenha valido a pena as horas, os dias, os anos que me isolei. Os segundos em que pressionei lápis contra folhas brancas foram e ainda são os melhores períodos de tempo em que me dedico a algo de bom grado. A arte me sensibiliza. Não há como explicar neste instante de que modo ou em qual potência. Eu a todo momento me deixei levar por essa correnteza instintiva, e quando notei, lá estive trocando o dia pela noite por estar cada vez mais apaixonada por um universo que visionava ser o que no futuro me traria retorno, não só financeiro, mas acima de tudo de realização profissional.
- Se o Terry te soltar um pouco tenho certeza que você vai fazer isso. – mamãe sempre muito otimista.
Terry. Terry Becker. Meu tutor, guru, mentor, chame-o como melhor preferir. Mamãe de início não foi muito com a sua cara, até porque convenhamos, não é todo dia que um cara estrangeiro, tatuado e cheio de intenções das quais você não sabe se são boas ou ruins bate na sua porta dizendo que sua filha é um prodígio. Claro que antes da fase dos bons frutos teve toda aquela novela até que ele finalmente me notasse. O nosso primeiro contato foi em um festival de tatuagem que aconteceu numa das vezes que estive em Londres, e juntou centenas de profissionais. Eu, fase final da adolescência, já repleta de rabiscos, interesse e disposição para aprender, fui diretamente ao seu encontro ao chegar ao evento. Por ele ser tão talentoso e parcialmente jovem na época, tornou-se o meu alvo principal, pois eu o admirava por ser demasiadamente faminto pelo aprendizado que se deve ter ao escolher qualquer profissão, ainda mais a nossa. Não tenho vergonha em citar que implorei para que ele me notasse em meio a tantas pessoas alvoroçadas, e por sorte, ele me observou, e escutou o que eu tinha para dizer. E depois de analisar meus desenhos e visitar a minha casa por mais de quatro vezes, pediu permissão aos meus pais para que eu me mudasse com ele para a França. Explicou que abriria sua primeira franquia europeia, e que iria se mudar dos Estados Unidos para lá no intuito de transpor inteiramente sua atenção para o projeto arriscado, e após me encher de elogios, tentou convencê-los com a promessa de que me transformaria em uma das melhores tatuadoras da nova geração. As palavras futuro e promissor foram repetidas centenas de vezes, alimentando cada vez mais os meus sorrisos. Também foi bonito ver a confiança de mamãe crescendo, mesmo que eu visse meu pai indiferente aos meus desejos. Becker adquiriu o voto de lealdade de um e um sim apático de outro. Peguei as malas e parti com minha mãe à Paris. Me culpo um pouco pelo afastamento e enfraquecimento do casamento de meus pais nessa época, pois fora um ano corrido e necessário para que fosse gerada uma credibilidade em Terry.
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Em Meio à Escuridão (BTD) || H.S. || K.S.
RomantizmAngela Foster é uma jovem tatuadora fascinada por metáforas. Ela fala, age e elabora diversas delas em sua mente um tanto conturbada por incidentes do passado, alimentando a ideia de que a racionalidade é o melhor caminho para a felicidade. Geniosa...