Capítulo Três - Parte Um

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Puxo o travesseiro para cima da cabeça. Quem foi o retardado que teve essa ideia maravilhosa de me ligar cedo? Argh. E eu fui mais idiota ainda por não ter colocado o celular no silencioso.

O barulho continua. Me viro na cama, tentando achar uma posição que ao menos abafe um pouco o som. Não quero nem saber – quem quer que esteja me ligando nesse horário não vai ter uma resposta tão cedo. Falta de noção. Isso sem mencionar que qualquer um que me conheça sabe que odeio que me liguem. É muito mais fácil mandar uma mensagem.

Aperto o travesseiro com mais força. A essa altura, quem está ligando já deveria ter desistido. Cúmulo. A primeira coisa que vou fazer quando sair da cama vai ser tirar todos os sons do meu celular, só por via das dúvidas, porque esse barulho...

Não.

Espera.

Jogo o travesseiro para o lado e me sento de uma vez. Isso não é o toque do meu celular. Não é nenhum dos toques padrões e meu celular parou de funcionar ontem de novo.

O barulho está vindo de fora... Sinos. São sinos tocando. Abro a janela e olho para os lados, estreitando os olhos por causa do sol forte. O som vem de todos os lados... Os sinos que estão em todos os megaprédios e na maioria dos prédios menores, por causa de uma das tradições mais velhas dos draconem.

No prédio da frente, várias pessoas estão nas janelas, a maioria com cara de quem acabou de acordar. Então os sinos não estão tocando há muito tempo. E mesmo do quarto andar eu consigo ver as pessoas lá na rua, com as cabeças levantadas. Não sei se alguém aqui ainda sabe o que os sinos significam, mas...

A Domina está morta. É o único motivo para algo assim. Se fosse alguma boa notícia dos draconem, eles estariam usando um dos ritmos mais festivos, não essas batidas lentas e espaçadas. Pesadas.

Fecho as janelas de novo e me sento na cama. Pensei que fosse demorar mais. Não muito, mas... Nos últimos dias, minha mãe estava completamente incoerente. E a Domina ainda estava consciente dois dias atrás. Posso não ser nenhuma médica para dar uma previsão certa, só estava chutando baseada no que vi. O que eu falei – o prazo de duas semanas – foi um chute pensando no que aconteceu com minha mãe...

Que não teve nem mesmo direito aos ritos normais de um draconem, porque a consideraram "impura" depois que eu fugi.

Certo. É isso que os draconem são, no fim das contas. Sempre prontos para descartar as pessoas na primeira inconveniência, como fizeram quando minha mãe adoeceu e me deixaram me virar como podia, sozinha. O que quer dizer que eu não devo nada para eles. Nem vou jogar meu dia fora pensando nisso.

Não importa mais para mim. Não sou mais parte daquele mundo.

Troco de roupa depressa, pego minha mochila, passo manteiga em um pão dormido e saio do apartamento comendo. Normalmente não acho uma boa ideia ir atrás de Nai. A família dela é enorme e meio louca, e a maioria deles mora na mesma área. Mas se tem alguém que vai conseguir me distrair agora, é ela.

Os sinos continuam tocando enquanto desço para o segundo andar e atravesso a área central do prédio. Pelo que me lembro, vão continuar tocando por mais algumas horas, um sinal de respeito para a Domina. No passado, a quantidade de batidas dos sinos era a idade da pessoa que morreu, e os sinos que tocavam dependiam da posição da pessoa na hierarquia. O castelo de Raivenera ainda tem os sinos dessa época e, mesmo que alguns dos draconem insistam nessa tradição até hoje, o sino principal nunca é tocado. Mas, quando os bairros altos começaram a crescer demais, mudaram a questão da hierarquia para quantos sinos e por quanto tempo.

Hoje, tenho certeza de que o sino principal também está soando.

Saio por uma das portas laterais e subo o lance de escadas que dá em uma das passarelas entre os prédios. Desse lado, as ruas são estreitas demais para qualquer coisa além de pessoas a pé. Até teve uma época em que alguém decidiu que usar bicicletas e motos aqui poderia funcionar, mas os problemas e acidentes foram tantos que isso não demorou uma semana. Depois disso, a região dos megaprédios voltou ao normal: trânsito quase que só de pedestres, com carros passando por umas poucas ruas principais e mais nada. E as ruas, ao contrário do que acontece nas outras áreas, não têm nenhuma loja à vista. Tudo está dentro dos prédios.

Marcas do Destino (Draconem 1) - DegustaçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora