Antonella

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—Herege!

Gritos ecoam pelo mercado. A multidão, antes concentrada nos produtos oferecidos pelos mercadores, se amontoa na tentativa de entender o que se passa.

Largo os tecidos em minhas mãos; Andrew faz o mesmo. Logo nos encontramos junto à multidão, que não para de cochichar.

—O que está acontecendo? —Uma mulher diz.

—Parece que encontraram mais uma bruxa. Estão preparando a fogueira. —A outra responde logo em seguida.

De repente, surge perto da grande fogueira concentrada no centro do mercado, uma moça com os braços agarrados por dois oficiais da igreja. Ela gritava desesperada, enquanto os dois homens a arrastavam de maneira agressiva.

—Por favor. Eu juro em nome de Deus que sou inocente! —Seu choro de dor e sofrimento martelava em meus ouvidos.

Atrás dela, duas crianças surgem aos prantos. Claramente seus filhos; eles tentam correr até a mãe, mas são impedidos pelos guardas.

Sinto meu coração apertar.

As portas da igreja se abrem, e o Tribunal da Santa Inquisição aparece: O papa, seguido por bispos e patriarcas. Suas expressões eram de pura frieza.

—Caros fiéis; em nome do Tribunal da Santa Inquisição, que sempre buscou manter a ordem e os preceitos divinos, venho lhes comunicar o aparecimento de mais uma representante da abominável raça das bruxas; enviadas pelo diabo para tentar acabar com a paz presente entre os feudos de Roma. Dessa forma, o Tribunal condena esta herege a Fogueira Santa. —O papa anuncia, deixando a multidão amedrontada. — Que assim ela possa, juntamente com sua carne, ter seus pecados queimados.

Os guardas que prendiam a mulher a arrastam para uma comprida vara de madeira, pendurada sobre a fogueira. Apesar de tentar lutar, ela é vencida pelos homens e logo acaba amarrada. Seus gritos e seu choro eram tão altos quanto os de seus filhos.

Os oficiais da Igreja, com tochas de fogo em mãos, acendem a Fogueira Santa. Rapidamente o corpo da mulher é coberto pelas chamas.

Seguro a mão de Andrew e a aperto com força. Não sabia o que era mais doloroso: Ver aquela mulher ser queimada viva, ou seus filhos chorando pela perda da mãe. Não a conhecia, mas seu comportamento não parecia ser de uma pessoa enviada pelo diabo, e sim de alguém inocente.

—Chega, vamos sair daqui. —Andrew diz, me puxando pelo braço em direção à saída da cidade.

Caminhamos em silêncio até o feudo. Ambos estávamos em choque pelo que ocorrera. Apesar de sabermos que cenas assim eram comuns na praça da cidade, nunca havíamos presenciado de fato uma condenação.

Ao chegarmos em casa, meu pai está trabalhando na terra, e consigo ver pela janela que minha mãe e tia Stella estão concentradas na costura. Aproveito a situação para puxar Andrew na direção da parte de trás da casa, aonde ficava o nosso esconderijo secreto. Tínhamos esse lugar desde os 6 anos de idade; para nossos pais, sempre foi apenas um canto atrás de uma árvore grande, mas para nós era importante. Quando crianças, prometemos um ao outro que ali contaríamos todos os nossos segredos, e ali eles permaneceriam.

Assim que sinto a segurança do ambiente, longe de tudo, apenas eu e Andrew, caio no choro.

—V-você viu aquilo? Como coisas assim podem acontecer, meu Deus?

Andrew corre até mim e me envolve em um abraço. Seus braços eram meu porto seguro. Éramos mais do que primos, éramos melhores amigos, como irmãos.

—Andrew, aquilo não pode acontecer com você; eu não vou aguentar ver você naquela fogueira. —Falo aos prantos, olhando no fundo dos olhos dele.

Andrew é homossexual. Ele me contou faz algum tempo. Esse é um dos piores pecados já existentes. Quem o cometia, ia direto para a fogueira santa. Minha primeira reação ao ouvir sua confissão foi entrar em pânico e tapeá-lo, alertando sobre tudo o que havíamos escutado desde crianças sobre o destino de hereges assim. Apesar disso, prometi que jamais contaria aquilo a ninguém.

Mas depois do que vira a pouco, todos os meus medos vieram à tona novamente, em dobro.

—Calma, Anta. —Diz Andrew. Percebo que ele tenta demonstrar tranquilidade, apesar de estar sentindo claramente o contrário. — Nada de ruim vai acontecer. Sinto muito, mas você vai ter que me aguentar ainda por um bom tempo.

Abro um sorriso, abraçando-lhe com mais força. Ele sempre sabe como melhorar o meu astral.

—Não me chame de Anta. —Digo, trocando uma risada com ele logo em seguida.

Enxugo as lágrimas. Procuro manter o pensamento de que, se ninguém mais souber sobre Andrew, nada de ruim vai acontecer com ele. Isso faz com que eu me sinta mais calma.

Saímos juntos do esconderijo, decididos a não comentar nada com nossa família sobre o ocorrido na praça.

Chegando na frente de casa, vemos que meu pai conversa com o Senhor Feudal. O que ele queria agora?

O Senhor Feudal não era uma pessoa muito agradável; na verdade eu diria que ele é insuportável. Além de possuir uma aparência horrenda, tinha o costume de nos humilhar com frequência por sermos seus servos.

Logo que ele se vira para ir embora, aparentemente irritado, meu pai faz um sinal com a cabeça para que eu e Andrew entremos. Esse era o sinal ''Reunião em Família''. Obedecemos imediatamente.

Meu pai entra logo atrás de nós e fecha a porta.

—Está tudo bem? —Minha mãe diz, preocupada.

—Por que o Senhor Feudal estava aqui? Não me diga que veio reclamar da Talha novamente. —Digo. A Talha era uma dentre várias de nossas obrigações. Segundo ela, como servos, deveríamos separar metade de toda nossa produção e entrega-la ao Senhor Feudal.

—Não, está tudo bem. —Meu pai afirma. —O Senhor Feudal só veio me comunicar que está vendendo o Feudo.

Ficamos todos boquiabertos.

—Como assim vendendo? E nós? —Tia Stella diz.

—Parece que ele está extremamente endividado, por isso vendeu o Feudo juntamente com nossos serviços. A cerimônia de passagem é em poucos dias.

Ótimo. E se esse novo Senhor Feudal for mais cruel que o nosso atual?

Uma onda de preocupações parece ter tomado conta de todos nós.

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OBS::: É importante lembrar que o livro se passa em um período de grande repressão e corrupção, portanto não existe a mínima intenção de causar ofensas ao tratar de assuntos relacionados a Igreja ou sexualidade.

Obrigada por tirarem um tempo para conhecer a história da minha menina! <3

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