Luanna descobriu que detestava cozinhar. A grande cozinha de pedra era quente e abafada, as panelas fumegantes piorava a situação. Mulheres iam e vinham levando pratos, panelas ou alimentos diversos. A assassina sempre procurava observar tudo que ali ocorria.
O café da manhã deveria ser servido em minutos, cozinheiras carregando mingau de aveia e pães assados, todos os escravos faziam esta refeição, as outras eram conquistadas por mérito. Em plena manhã Luanna já estava transpirando como uma chaleira fumegante, a garota estava ajudando a retirar os pães do forno e em seguida seria responsável por lavar as louças utilizadas na cozinha.
Jenna, a escrava responsável pela cozinha sempre estava ajudando a levar rapidamente o café para a sala de refeições e depois, ajudava a preparar a refeição dos guardas e dos intendentes. Isso era uma informação útil, saber que os guardas tinham refeições separadas era uma grande vantagem para Luanna e acabaria facilitando o plano.
A assassina observava algumas escravas que entravam na despensa e voltavam com muitos ingredientes diversos, se tivesse tempo e conseguisse ser sutil o suficiente, poderia entrar lá sem levantar grandes suspeitas.
Luanna escutou um grito e levantou a cabeça dos pratos, sobressaltada com o barulho. uma jovem garota que a ajudava com os pães queimou ambas as mãos quando as levou ao forno sem as luvas, bolhas começavam a aparecer na pele rosada por causa das queimaduras das pequenas mãos da garota, que chorava.
Luanna se aproximou da garota, que disse em voz baixa e trêmula:
- Eu... Eu f-fui p-pegar mais pães... e-esqueci de colocar luvas.
- Pelos deuses, você precisa procurar um curandeiro, vamos falar para Jenna...
- Não – interrompeu a garota, o medo brilhando em seus olhos junto com as lágrimas – e-ela disse que me mandaria ao açoitamento se me queimasse de novo...
- Certo, fique aqui, vou dar conta do trabalho, não chore, vamos conversar – Luanna sorriu confortavelmente para a jovem – qual o seu nome? Tem lindos cabelos, minha mãe tinha cabelos exatamente iguais ao seu. Ainda me lembro dos brilhantes cabelos vermelhos como os rubis das Volcano Islands, eu os achava achava lindos.
- M-meu nome é Amy. Obrigada... – a garota corou e desviou o olhar, cheio de dor e tristeza e medo. Meus pais me chamavam de cabelos de fogo, beijada por Nawlennip, o deus do fogo e minha tarefa seria aquecer o coração deles... até que os mataram e me levaram para este lugar. – Amy tornou a chorar e Luanna mordeu o lábio, olhando com pena para a garota.
- Também perdi meus pais quando era uma criança, é triste, ainda me dói o coração toda vez que me lembro dos bons momentos que passávamos e isto me dá forças para continuar, para que um dia possa fazer alguém se sentir tão feliz e amado quanto eles fizeram. – Luanna suspirou e retirou mais uma forma de pães do forno. – sempre tenha esperança, pois nela você encontrará seu destino e seu propósito, talvez esse seja o plano dos deuses para você, que se torne forte e com esperança se torne alguém que o mundo todo se lembrará.
Amy assentiu, com os olhos cheios de lágrimas, a própria Luanna se segurava para não chorar, precisava demonstrar força e coragem para a menina à sua frente e também não podia chamar muita atenção...
- De onde você vem? – perguntou Luanna, para manter a conversa viva e a garota distraída.
- Sou de Ownerless Islands, meus pais eram criadores de porcos até se recusarem a acompanhar os guardas de Nian Waymar até esta fortaleza.
A jovem assassina sentiu pena de Amy. Ownerless Islands era um lugar em ruínas onde a fome estava presente na maioria dos lares. Não haviam governantes, o povo não conseguiu se reerguer da guerra que transformou um rico império em terras sem dono onde o povo era escravizado e oprimido pelos reinos de Mahusay Saaristo.
- Sou de West Islands, vivi nas ruas até que me capturaram e me venderam aos Waymar. – Luanna sorriu – parece que não tivemos muita sorte – uma das escravas que passava por ali viu as mãos de Amy e gritou sobressaltada.
- Foi um acidente... – tentou explicar Amy, mas a mulher já tinha ido embora, correndo aos tropeços pela cozinha.
Luanna estava colocando os pães nas bandejas quando Jenna apareceu e puxou Amy pela orelha.
- Acha bonito descansar durante o trabalho? Os pães estão completamente atrasados neste setor, estava quase me perguntando o porquê, mas aparentemente alguém resolveu tirar uma folga durante o trabalho.
- Ela queimou as mãos, não tem condições de continuar. – interrompeu Luanna, Amy tornou a chorar, com as mãos no rosto e os cabelos vermelhos caindo sobre seus ombros como uma cascata de rubis.
- É isso que ganha por ser tão desleixada e descuidada. Eu avisei que se tornasse a se ferir, iria manda-la ao açoitamento diário. – respondeu sorrindo sadicamente para a garota que a olhava assustada como uma corça olhando para um lobo.
- Não! – respondeu Luanna – não há motivo nem necessidade nenhuma de açoitá-la por um acidente, a garota está com mãos queimadas, precisa de ataduras...
- Que estes ferimentos infeccionem e os deuses da morte a carreguem! Que ela tenha a punição necessária pela falta de comprometimento. Será açoitada hoje. – Jenna falava com rispidez e desdém, Luanna a marcou, ela seria uma “vítima” do plano de Karsten. – e você cale a boca ou me certifico que este seu rostinho bonitinho de princesa seja destruído. – a escrava-chefe riu e virou de costas e partiu.
Luanna precisava conseguir ataduras para Amy e depressa, a mão estava inchada e isso fazia com que as bolhas ficassem maiores e se a ferida infeccionasse a garota poderia perder ambas as mãos na melhor das hipóteses.
- Vou conseguir bandagens para você, prometo. – disse Luanna e saiu em direção à despensa, dificilmente seria notada ou barrada com a cozinha em caos.
A porta estava semiaberta quando Luanna chegou. Olhou para dentro, em busca de movimentação ou algo suspeito, mas não viu nada. A assassina entrou dentro da sala e fechou a porta. Haviam alfaces, cebolas, batatas e outras ervas e legumes sacos de farinha de trigo estavam jogados ao chão, alguns estavam abertos, ninguém perceberia caso alguma substância não desejada fosse parar ali.
Luanna viu camomila, babosa e sálvia em uma prateleira dos fundos da sala, seria ótimo levar algo para a ferida de Amy. Pegou camomila e babosa, amassou os dois ingredientes como uma vez tinha aprendido com o tempo que passou com alguns curandeiros para aprender mais sobre ervas e ferimentos, os colocou dentro de um copo e procurou faixas de tecido para enrolar as mãos de Amy quando terminasse. Triturou a sálvia e misturou água para acalmar a garota escrava.
Quando se dirigia à porta percebeu algo naquela sala. Um alçapão atrás de uma prateleira móvel estrategicamente posicionada para escondê-lo de olhos curiosos, mas ela era mais atenta que isso. Sempre aprendeu a olhar, a observar coisas que não são percebidas superficialmente.
A assassina fechou a porta da despensa e saiu da cozinha. Não podia simplesmente desaparecer no meio do trabalho da manhã. Luanna caminhou até Amy, que estava sentada no chão.
- Levante-se, limpe este ferimento, peguei umas coisas para você. – a garota obedeceu, cabisbaixa. – vou passar isto em você. – pegou a mistura de camomila e babosa e começou a passar sobre as mãos cobertas e bolhas e com a pele rosada e destruída pela queimadura. A jovem garota mordeu o lábio com a dor e a ardência que as ervas proporcionavam.
- E-eles vão me açoitar hoje... estou com tanto medo – disse a garota e se colocou novamente a chorar – terei cicatrizes, vão me achar horrível.
- Não vão. Pessoas sensatas não vão ver isso como cicatrizes de uma vítima, e sim como troféus de uma sobrevivente. – respondeu Luanna olhando nos olhos de Amy. – Não precisa ter medo, eu estarei lá, não te deixarei sozinha.
Luanna enfaixava uma das mãos de Amy com cautela e delicadeza, estava tão concentrada que mal percebeu quando Jenna se aproximou das duas, olhando com o ódio dos deuses da morte nas pupilas.
- Um belo dia para conversar durante o serviço, não?
- Eu só estava tratando o ferimento dela...
- Designaram seu trabalho como cozinheira ou curandeira? Ande, vá servir estes pães antes que mande você também ao açoitamento de hoje.
Luanna assentiu, cabisbaixa e submissa, pegou a bandeja cheia de pães e levou ao refeitório. Havia escravos por toda a parte, andando, correndo, e pegando bandejas. A jovem assassina caminhou até as mesas onde eram servidas as refeições e notou uma presença próxima a ela.
- Como estão indo os serviços? Descobriu algo útil? – perguntou Karsten
- Nada demais, apenas uma porta que valha a pena investigar, eu precisava conseguir veneno, talvez aqui tenha algum jardim...
- Posso investigar isto, vou ver se Zohinj consegue algum mapa da fortaleza. Tente recrutar alguns escravos para a nossa rebelião. Fique de olho nos que sofrerem açoitamento, eles serão os mais convencíveis. Observe o máximo que conseguir...
Antes que Luanna pudesse responder Karsten já havia ido embora, desaparecendo na multidão. Em silêncio e pensativa, voltou à cozinha para terminar o trabalho.
---
Karsten comeu o pão e não tocou no mingau cinzento e sem sabor. Esgueirou-se para fora do refeitório e seguiu em busca de Zohinj. o alvorecer mal havia chegado e já estava quente como o temperamento de Nawlennip – o deus do fogo e dos vulcões. – percorreu o pátio principal até encontrar uma grande porta de carvalho que dava acesso ao interior do castelo da ponta esquerda, que chamavam de Torre de desespero.
O lugar cheirava a pó, madeira e coisas velhas. Havia um balde de água e um esfregão encostados sobre a parede. Zohinj chegou ao salão um minuto depois, Karsten estava esperando.
- Não foi ao refeitório nenhuma vez desde que chegamos.
- Os faxineiros tomam o café logo que acordam, para não atrasar o trabalho, Nian Waymar gosta de ver a fortaleza brilhando o tempo todo ao que parece. – Zohinj pegou o esfregão e o molhou no balde – diga rápido antes que alguém apareça aqui.
Karsten sorriu.
- Um temperamento frio como o inverno nas Ilhas do Norte. Preciso que me consiga um mapa da fortaleza, ou a descrição perfeita de um. Será imprescindível para o plano. Preciso dele hoje, mas não o leve com você, preciso de um lugar discreto, não podemos arriscar perder nosso plano por um deslize fútil e infantil.
Zohinj assentiu e voltou ao trabalho. Karsten sorriu e saiu da grande sala sem emitir som algum. Provavelmente encontraria um mapa na torre de Nian, seria muito arriscado, um faxineiro não deveria pegar mapas para estudar. Seria mais conveniente pegar papel e representar da mesma forma, assim, ninguém daria falta.
O assassino terminou seu serviço naquela torre e se dirigiu à torre de Nian. Havia os aposentos dos hóspedes e compradores que vinham de longe para voltar com uma grande variedade de escravos.
Felizmente ninguém estava por ali. Todos tinham saído para resolver suas pendências o que deixava o lugar deserto e silencioso como as noites desérticas e áridas das Ilhas do Sul.
Zohinj sentia saudades de casa às vezes. Em alguns momentos se encontrava pensando no dia em que corria pelas ruas até à casa de sua avó, que sempre tinha bolinhos ou doces prontos durante a infância. A mulher de cabelos cacheados, olhos âmbar com uma pele escura característica das Ilhas do Sul.
Se lembrava dos dias em que acordava cedo para correr entre as casas de areia e o calor sufocante que fazia durante o dia. Lembrava-se do dia confuso e estranho que o fez fugir de Porto Solar. Tinha acordado na casa da avó como sempre e foi buscar água no Rio do Verão que passava pelo meio da cidade de Campos Verdes, uma das maiores das Ilhas do Sul. Pegou o arco e as flechas para evitar possíveis salteadores que ocupavam a região e começou a caminhada até o rio.
Estava completamente suado e com o corpo quente quando chegou às margens do rio. Tinha passado pelas portas da cidade, mas não eram os mesmos guardas que sempre o cumprimentavam, nunca tinha visto aqueles homens antes. Vyd, seu amigo de infância o acompanhava comentou que havia algo estranho...
A memória esmaeceu quando o assassino ouviu vozes e passos. Pegou rapidamente seus equipamentos de faxineiro e viu um alçapão escondido atrás de uma grande estante. O assassino abriu a porta velha e pesada de madeira e escondeu-se lá dentro. A odor da poeira deixava o ar pesado e seco, além do calor extremamente presente no local. Teias de aranha estavam presentes por toda a parte, sendo difícil movimentar-se sem se sentir grudento e repleto de linhas. O assassino ficou próximo ao alçapão para ouvir a conversa.
@FelipeTheWriter
Espero que tenham gostado, deixe nos comentários o que estão achando
VOCÊ ESTÁ LENDO
O Conto dos 5 Reinos - As Crônicas das Ilhas
FantasyKarsten é um assassino de West Islands. Assombrado por uma infância onde o pai tinha apenas a intenção de transformá-lo em uma arma. Ele apenas quer viver uma vida tranquila e pacífica. Aiden é um príncipe de Cold Islands. Oprimido pelos irmãos e pe...