Os dias naquele lugar, naquela calmaria sem fim, já haviam entrado na rotina de Clara. Ela ainda detestava viver ali? Detestava ter que acordar cedo todos os dias, mesmo quando era final de semana? Ter que trabalhar pesado? Enfim... ela detestava aquele estilo de vida? Sim! Detestava e muito, mas, infelizmente para ela, não tinha saída.
Na verdade, apesar de todo o jeito rebelde que ela fazia questão de manter, mesmo não combinando nada com o que ela era de verdade, ela estava começando a se acostumar com tudo, porém, nunca admitiria, por isso fazia questão de pontuar as coisas que ela achava negativas acima das que ela poderia, simplesmente, enxergar como algo positivo e balsâmico para seus dias.
Fazia um mês que ela havia se instalado na casa de Angélica e, nesse meio tempo, ela já conseguia pensar na mãe sem tanto rancor, mesmo não se permitindo falar com ela tanto quanto seu coração pedia. Também conseguiu trocar mensagens mais constantemente com Samanta, que mantinha o jeito "tô nem aí", mas, mesmo assim, era atenciosa com sua irmã caçula.
Até mesmo o ódio de seu pai... sim! Ela havia admitido que sentia raiva, ódio e rancor por seu pai... já havia diminuído, porém, esse ainda era forte em seu peito. Sempre que ela se lembrava do que ele fez com ela, sua mãe e sua irmã, ela sentia ainda a dor do abandono e do desprezo apertar seu peito. Aquela era uma dor que, provavelmente, ela levaria para toda sua vida e isso a deixava mais enraivecida ainda, pois ele conseguira mexer com toda sua vida, sua estabilidade emocional, só com uma atitude egoísta.
Naquela quinta-feira à noite, ela estava em seu quarto, terminando de ler um livro que havia sido passado pela professora de Produção Textual havia passado para que eles lessem e fizessem um trabalho para a próxima aula. Era estranho como Clara se via refletida na figura de Joana, a personagem principal do livro de Clarice Lispector. "Espero, pelo menos, não ter uma vida adulta tão fodida quanto ela" pensou achando graça.
Lá fora a escuridão da noite sem Lua e o silêncio trazia uma sensação de paz e, ao mesmo tempo, medo.
Angélica já havia ido dormir, naquele dia ela parecia mais cansada, abatida e distraída que os dias normais. Clara ainda tentou perguntar se havia algum problema, mas ela desconversou e foi para seus afazeres.
Clara estava distraída, perdida nas letras, nas linhas, estava tão mergulhada na estória, que só largou quando sentiu o chamado da natureza, anunciando que ela precisava visitar o banheiro lá fora. Olhou no celular e já passavam das 23:00 e aquilo a fez sentir um cansaço sem limites, pois ela sabia que tinha perdido horas preciosas de sono.
- Bem! Hora de dormir. - Falou, fechando o livro com a página onde ela havia parado marcada e se levantando.
Colocou-o sobre a mesa e saiu, indo em direção a área externa e ali poder ir ao banheiro. Passou pelo quarto de Angélica e parou... por alguns segundos pensou ter ouvido algo, mas o silêncio dominou a casa escura. Balançou a cabeça afastando aquela impressão e seguiu.
Acendeu a luz de fora e, assim que abriu a porta e saiu, se deparou com Buick e Amarelão dormindo grudados. Aquela noite estava mais fria, então eles buscaram se aquecer da melhor forma possível. Eles sempre dormiam ali, na grande varanda e colados na porta de saída. Clara sorriu ao vê-los e passou cautelosamente, indo até o banheiro.
Depois de alguns minutos, a garota saiu, passando novamente pelos cães dorminhocos e entrando. Fechou a porta, apagou a luz e seguiu para dentro, indo para seu quarto. Despreguiçou já pegando o pequeno corredor e, quando estava chegando perto do quarto de Angélica, ouviu um sussurro agoniado, o que a fez parar para ver o que poderia ser.
Ficou ali parada por alguns segundos, buscando apurar sua audição e, quando pensou ser só mais uma vez sua mente lhe pregando peças e lhe fazendo ouvir coisas, escutou novamente o som, só que dessa vez mais alto vindo do cômodo ocupado pela mulher.
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O Sol Sempre Brilha (Romance Lésbico)
RomansEm um pequeno povoado no interior de Minas Gerais vive Angélica... uma mulher assombrada por uma tragédia no seu passado e que se afundou na vida reclusa para expurgar seu sentimento de culpa. Vivendo calmamente, como uma pequena produtora, solícit...