03: Privação de sono não é vida

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Acordei de um pesadelo do qual eu não me lembro. A luz pálida da manhã ainda começava a penetrar as janelas fracamente com seus primeiros raios. Eu tentei voltar a dormir, mas já não conseguia.

Fiquei na cama por um tempo, tentando lembrar de coisas que eu não tinha certeza se havia esquecido. Tem muito cabelo nos meus olhos, talvez eu precise cortar.

O edifício em que eu moro tem apenas cinco andares. É um lugar bem periferia fingindo ser classe média. Acho que as pessoas se importam mais com a aparência do lugar em que estão morando do que qualquer outra coisa. Eu tinha apenas dois critérios para escolher o meu: preço e localização. Não compensa pagar um aluguel barato se você vai precisar pegar o metrô e dois ônibus pra ir trabalhar. Daqui, pelo menos, eu posso ir a pé até o escritório, e isso já é uma barganha.

Da janela do meu quarto, consigo ver os imensos prédios mais para o centro. Há gigantes perto de mim também, mas os do centro são tão altos que ainda consigo vê-los à distância, mesmo a quilômetros. A cidade é muito movimentada, e nunca está dormindo.

Ao contrário de mim, que não sei mais sequer quando estou acordado.

Eu durmo e acordo ouvindo o trânsito. Já se tornou ruído branco pra mim. Na verdade, acho meio tranquilizador.

Eu imagino como deve ser morar nos apartamentos mais altos. Amanhece primeiro lá em cima. Isso quer dizer que as pessoas ricas têm mais tempo de vida? Parece uma metáfora idiota, mas acho que isso quer dizer algo profundamente literal. As pessoas ricas têm mais vida que nós. Elas não só têm mais tempo, mais dia, como podem melhor aproveitar seus afazeres.

O Sol ainda não surgiu propriamente no horizonte, mas a luz já está mais clara do que pálida. Em meu cantinho, meio periferia-fingindo-ser-centro, ainda consigo ouvir os pássaros entre os roncos dos motores toda manhã.

Tomei coragem para levantar da cama. Sentei. Hoje eu só vou ao escritório à tarde. Eu não devia estar acordado antes das nove. Preciso comer alguma coisa.

Uma vez minha mãe veio me visitar. Já faz bastante tempo, eu ainda estava no segundo ano da faculdade e não tinha tempo pra nada. Ela achava que eu a estava esnobando. Gostaria de poder dedicar mais tempo a ela.

Como é que você consegue dormir aqui, Daisuke? É tanto barulho!

Como explicar pra ela que é justamente o barulho que me ajuda a dormir? O silêncio é problemático. É uma falsa sensação de ordem. A qualquer momento o vento pode soprar por uma cortina, algo pode cair em algum lugar, um gato pode aparecer na janela, e você desperta. A ordem está sempre destinada a ser perturbada o mais cedo possível. O caos, pelo menos, é confiável, porque você nunca sabe aonde ele vai parar.

Tinha um gato na janela. Ele bateu no vidro. Isso me assustou. Demorei um tempo para me tocar de que havia uma criatura viva presa do lado de fora do meu apartamento, implorando para entrar.

Levantei e abri a janela.

– De onde você veio? – perguntei.

O gato, pomposo, me ignorou e passou direto para dentro. Eu o acompanhei com o olhar, intrigado.

– Nós estamos no terceiro andar. Como você chegou aqui?

O gato deu umas voltas no chão, sentou-se e começou a lamber a pata. Era um gato enorme, talvez já entrando na velhice. Seu pelo era de um tom de cinza fascinante, meio aveludado, como que muito bem cuidado. Aquele não podia ser um gato de rua. Mas, ainda, não tinha uma coleira. Será que tinha fugido de algum dos vizinhos?

– Você está com fome?

O gato olhou para mim com imensos olhos azuis.

Miau

Vanitas: uma fatia de morteOnde histórias criam vida. Descubra agora