06: Quando a vida é um tormento (Parte 2)

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- Ele não consegue se matar? - indagou Anastácia.

- Foi o que ele disse.

- Como assim? - ela perguntou, intrigada.

- Eu não sei.

Eu fiquei na cena do acidente quase até o fim do resgate. Sentado nos trilhos, os vagões jogados por todos os lados. O pequeno homem dormia ao meu lado. Tinha chorado até apagar. E nada o acordaria agora. Muitos moradores acordaram e correram para ajudar os socorristas, mas eu não consegui me mexer. Fiquei ali, parado, impotente. Eu não queria ajudar. Não queria ver. Não queria ver nada daquilo.

Pessoas chorando, sofrendo, lamentando, agonizando, lutando, se agarrando a um fio de vida. Pessoas partidas em pedaços, esmagadas por placas de aço, ossos expostos, intestinos pendurados, dentes quebrados, cabeças decepadas. Eu não queria ver. Eu só ouvia. O desespero. O horror.

No meu campo de visão, uma menina pranteava. O rosto vermelho, um filete de sangue escorrendo da cabeça. Uma angústia profunda. Estava sentada, as pernas estiradas, o joelho direito dobrado para o lado errado. Devia ter uns cinco anos. Um socorrista a pegou nos braços e colocou numa maca. Os pais dela não pareciam estar em lugar nenhum.

Um homem e uma mulher vieram falar comigo. Eu me identifiquei como a testemunha. Falei que estava bêbado, mas que vi o homem cair no trilho e o metrô descarrilhar antes de atropelá-lo. Ele estava bem, a ferida na mão era anterior ao acidente. Não senhora, eu não o conhecia. Sim senhora, eu podia ir à delegacia.

Apenas assinei um papel com meu depoimento oficial. A mulher que estava comigo disse que apenas oito pessoas morreram, mas cinquenta e duas ficaram feridas, treze em estado grave. O policial disse que não foi tão ruim quanto poderia. Eu ainda estava chorando. Pensei na menina que não achou os pais. Será que eles se encontrariam mais tarde no hospital?

Às três e meia da manhã eu cheguei em casa. Uma viatura foi me deixar. Anastácia estava me esperando. Ela disse que eu tinha demorado. Eu falei que houve um acidente. O policial falou que ia deixar o anão numa cela até ele ficar sóbrio, mas eu pedi pra ele deixá-lo comigo. Sim senhor, eu não o conheço. Mas não teve dolo. O policial sabia que não teve dolo, mas era a única coisa que ele podia fazer.

Acho que ele deve ter levado bronca do superior, porque Anastácia puxou a varinha e o policial concordou comigo.

- Eu já conheci pessoas imortais, mas é a primeira vez que ouço falar de alguém que tenta ativamente se matar e não consegue. - Anastácia me auxiliava levitando o homem inconsciente escada acima.

- Acontece muito, não? - racionalizei. - Tentativas de suicídio falhas.

- Depende do método. Se jogar na frente de um trem não costuma falhar.

Não respondi.

- Por que você o quer aqui, afinal?

- Não sei direito. Pode ter sido coisa de momento, mas... Eu não sei. Acho que a polícia ia maltratá-lo. Eu realmente acho que ele não tem culpa. E fui duro com ele. Pelo menos até ele ficar de boa e poder voltar pra casa...

Cheguei ao meu apartamento. Abri a porta. Anastácia deitou o homem no sofá. Ficamos os dois olhando pra ele por um minuto.

- Hm... obrigado - falei.

- Não há de quê. - Ela bocejou. - Tá muito tarde.

- Tá, sim. - Anuí. - Desculpa por te fazer ficar esperando.

Vanitas: uma fatia de morteOnde histórias criam vida. Descubra agora