Estava chovendo, e eu tinha acabado de chegar do escritório. Depois de tomar banho, deixei a tevê ligada, fazendo ruído branco, e fui preparar algo pra comer. Estava me sentindo especialmente automatizado, quando o celular vibrou no meu bolso.
Era uma ligação de Felipe. Por que ele ligaria pra mim? Por que não mandar mensagem? Minha primeira reação foi querer ignorar, mas acabei atendendo. Não devia ter feito isso.
– Alô, Felipe?
– Bicho, tu tá vendo?
– Vendo o quê? – perguntei, desinteressado. Minha atenção estava em torrar pão.
– Késia, bicho. A gente tava falando dela sábado.
– A gente falou de várias pessoas no sábado – retruquei. Minhas memórias de falar dos colegas de escola era um pouco turva. Lembrava mais de ter falado, do que de fato do que tinha sido dito.
– Doido, liga a tevê agora. – Havia uma urgência estranha na voz dele. Deixei o pão na sanduicheira e andei devagar até a sala. Já estava passando um noticiário, eu só precisava ligar meus ouvidos ao que estava sendo dito.
"... vinte e quatro anos, foi encontrada neste hospital abandonado. Há suspeitas de homicídio, mas a polícia ainda não confirmou nada. Os membros da família estão desamparados."
A repórter estava na frente do hospital cercado por fitas amarelas. Era um ponto relativamente conhecido na minha cidade, onde adolescentes se reuniam para beber e usar drogas. Estava interditado há mais de uma década, mas é claro que ninguém ligava pra isso, e não havia nenhuma fiscalização.
A tela exibiu uma foto de Késia, que parecia não ter mudado nada desde o Ensino Médio. A reportagem seguia para entrevistas com pais, tios e amigos emocionados, que a descreviam como uma jovem cheia de sonhos, que não merecia isso. Uma garota que chorava copiosamente pedia desculpas e dizia que gostaria de ter feito algo por ela.
Eu me lembrava de Késia como a garota dos brincos grandes. Toda semana ela aparecia na sala com brincos novos, um maior e mais escandaloso que o outro: caveiras coloridas, frases de empoderamento feminino, duas metades de um coração partido. Algumas meninas costumavam ser maldosas com ela, mas ela não demonstrava se importar. Era popular entre os garotos, e gostava de se reunir com alunos mais velhos no recreio pra ficar ouvindo rock em caixinhas de som. Eu não costumava falar com ela, mas ela nunca deixou de ser educada comigo. Era uma das poucas pessoas por quem eu não me sentia desprezado, apesar de não sermos próximos.
Ela era bem precoce, e foi a primeira menina da turma a pintar o cabelo. E enquanto todas as que a seguiram tingiram de preto, loiro ou ruivo, ela pintou de azul. Foi polêmico, na época, mas muita gente gostou. E aquelas garotas maldosas ficaram com inveja.
No primeiro ano do Ensino Médio, surgiu um rumor de que ela era fácil e dormia com qualquer um. Eu nem lembro o que achava disso na época, ou sequer se acreditava, mas, pensando agora, com certeza devia ser fofoca das meninas que não gostavam dela, dizendo que por isso ela só andava com garotos. Apesar de Felipe não estudar mais comigo, ainda nos falávamos, e ele foi um dos que me encorajou a chamar ela pra sair. Diziam que nós éramos "esquisitos igual", e, já que ela ficava com qualquer um mesmo, não devia ter problema pra mim. Me empurraram para falar com ela quando estava sentada sozinha no recreio, uma vez, e eu fui. Quando cheguei perto, vi que ela estava chorando. Não disse nada, apenas disfarcei, fingi que não vi, e desapareci da vista dos caras. Pra ser honesto, eu sequer me lembro dos rostos deles agora.
Algumas pessoas brigaram por causa dela. Houve uma ocasião em que um de seus amigos mais velhos voltou à escola só pra bater num cara que a vinha assediando por causa dos rumores. Depois que terminamos os estudos, eu também já não falava mais com Felipe, e devo ter visto Késia apenas uma ou duas vezes antes de ir embora da cidade. Lembro dela me cumprimentando com um sorriso. Isso já fazia quase dez anos, e eu nunca mais tinha ouvido falar dela.
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Vanitas: uma fatia de morte
FantasyDaisuke é um jovem adulto cheio de ansiedades existenciais, que vive contemplando a morte e a natureza efêmera de todas as coisas. Na sua tentativa de navegar por uma existência aparentemente insignificante, ele tem vários encontros com personagens...