Consultei de novo meu celular. A bateria estava quase no final. Eu devia ter colocado pra carregar antes do almoço. Não sei quantas vezes eu vou precisar quebrar a cara até aprender.
Olhei pros dois lados. Os carros passam como formas de vida superiores, indiferentes à vontade da mortalidade, deixando rastos de luzes vermelhas e amarelas em seu encalço. Parecem fogos-de-artifício. O céu está dourado, nuvens esparsas se afastando do zênite; distante demais para ser propriamente visto, ofuscado pelos imensos arranha-céus e as luzes que nunca apagam. Certa vez, pouco depois de se mudar pra cá, Anastácia comentou, um pouco atônita, que na cidade, mesmo à noite, parecia estar de dia.
Isso é antinatural, não pode fazer bem pro ser humano, falou ela, com aquela certeza das velhinhas do sítio. Por isso eu prefiro morar aqui, no cantinho.
Fazia bastante tempo que eu não vinha ao centro. Nem lembro quanto tempo, na verdade. Mesmo quando estava indo à faculdade, passava rapidamente de ônibus e não me detinha.
Eu realmente preciso comprar uma moto.
O sinal abriu, finalmente. Atravessei a avenida junto com centenas de pessoas apressadas. Sou o único andando a um passo moderado. Não tenho pressa nenhuma.
Dobrei na esquina e consultei o celular novamente. Uma notificação de mensagem apareceu no topo da tela. Era minha mãe. Deslizei pro lado. Zoom no mapa. Mais uns três quarteirões.
Por que eu concordei em vir pra cá? Devia ter insistido pra ele ir lá pra casa.
Havia uns becos pelos quais eu podia cortar caminho, mas decidi seguir pelas ruas principais. Preferia ter menos com que me preocupar, especialmente nos últimos dias. Um assalariado passou apressado por mim, segurando a maleta junto ao peito como o maior tesouro da vida. Quase esbarrei num poste ao acompanhá-lo com os olhos.
Consultei o mapa mais uma vez. Certo, bem ali. Vinte e três por cento. Se eu desligar a Internet, provavelmente consigo chegar em casa à noite antes que o celular descarregue. Guardei-o no bolso, dobrei mais uma esquina e subi uns degraus para uma praça em que nunca estive.
Entre um museu e um edifício empresarial, a praça estendia-se por vários lotes. Bem arborizada, sombreada, com jardins e bancos de desenhos modernos. Lojas, lanchonetes e galerias ramificavam-se em todas as bordas, com comerciantes chamando a freguesia, e muitos cheiros fortes de comida misturados. Pessoas liam livros e jornais, indiferentes umas às outras. Casais contemplavam a cidade, uma senhora alimentava pombos. Jovens alternativos com roupas recortadas bebiam e riam debaixo de uma árvore grande. Os carros na avenida agora pareciam distantes, mas se não pudesse ainda ouvi-los, poderia jurar que estava a quilômetros da cidade.
Passei por uma fonte com a cara de um leão e esquadrinhei meus arredores outra vez. Um braço preto acenava à minha direita. Felipe estava sentado à mesinha de uma sorveteria.
– E aí, meu velho! – Ele levantou para me abraçar. Aceitei, embora um pouco constrangido. – Foi difícil de achar?
– Não muito, na verdade – ri-me. – Falei. Era só o meu celular não descarregar, que dava certo.
– Beleza, pô. Senta aí – ele fez um gesto e eu obedeci. – Desculpa mesmo. Era pra eu ter ido te buscar em casa, pô.
– Que nada. Tudo certo.
– É, né? – Ele olhou pra mim com aquele sorriso de boca aberta, como que com expectativa. Então começou: – Mas aí, bicho? Como é que tá?
– Você sabe – enrolei. É claro que ele não sabia. – O mesmo de sempre. Trabalhando, terminando o TCC...
– Tu ainda não terminou isso, bicho?! – exclamou ele, em tom amigável. – Porra. Ei, pode não, pô. O cara viver assim. Diga aí no que eu posso ajudar.
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Vanitas: uma fatia de morte
FantasíaDaisuke é um jovem adulto cheio de ansiedades existenciais, que vive contemplando a morte e a natureza efêmera de todas as coisas. Na sua tentativa de navegar por uma existência aparentemente insignificante, ele tem vários encontros com personagens...