05: Quando a vida é um tormento (Parte 1)

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Estar bêbado é uma sensação engraçada. Você fica ligeiramente tonto, mas não a ponto de perder o equilíbrio (dado que não tenha bebido demais), então você anda cambaleando, o que é engraçado pra quem está te vendo; mas se sente uma leveza, como se seu corpo estivesse literalmente numa gravidade menor, e se sente flutuar mais do que cair. Sua visão fica ligeiramente embaçada, como se você tivesse uns três graus de miopia, e só é possível enxergar nitidamente onde seus olhos estão diretamente focados.

Quando se está bêbado, o mundo parece um pouco mais brilhante e fantástico. A água da chuva no asfalto reluz como diamantes, e as luzes dos postes são sonhos que pendem do firmamento. As estrelas parecem estranhamente mais próximas – na verdade, existe uma sensação difícil de pôr em palavras, como se o mundo inteiro estivesse mais próximo. E você se sente um pouco mais parte de tudo, ao mesmo tempo que destacado de si mesmo. Talvez seja por isso que as pessoas gostam tanto de beber.

Anastácia uma vez falou que o álcool "desliga as travas sociais do seu cérebro", o que na prática acaba com a sua capacidade de avaliar consequências. Por isso pessoas bêbadas fazem besteira.

Tem um feitiço que faz exatamente a mesma coisa, mas sem causar a sensação de embriaguez. É muito engraçado. Tive medo quando ela falou isso.

Desci a rua cambaleando alegremente como uma pluma, pensando que talvez não devesse ter bebido tanto; mas tudo bem, porque não tem expediente amanhã. Vou dormir feito um casulo.

Só então pensei que Anastácia devia estar me esperando até agora. Eu ia chegar bem mais tarde do que avisei, e só pagaria seu Jamesson amanhã. Que vacilo. E se eu acabasse ficando do lado de fora? Péssima ideia.

No meu bairro, há um trecho do metrô que corre à altura da rua, reaproveitando uma via antiga que corta uma avenida. Há uma amurada separando a linha das ruas, mas é tão baixa que a via tem passarelas para travessia a pé em alguns pontos; noutros, a amurada era substituída por uma cancela, para passagem de carros. Por isso, o ponto de referência da minha vizinhança era "perto da linha". Apesar do metrô cruzar grande parte da cidade, ali era o único trecho em que era possível andar pelos trilhos.

Algumas pessoas já haviam tentado passar por ali para subir na estação e embarcar sem pagar passagem, mas isso era problemático. Uma coisa era subir na linha; subir na plataforma era outra. Além disso, a estação mais próxima era bastante longe pra ir a pé, e tinha que passar pelo subterrâneo. O risco não valia a pena. Eu não sei por que estava pensando nisso, mas devia estar andando bem mais devagar do que de costume, porque achei que já estava na rua de casa, mas, quando dei por mim, ainda estava cruzando a linha.

Havia uma criança do outro lado da rua. Esfreguei os olhos e apertei para aguçar a visão. Uma criança sozinha na rua a esta hora? Seria uma moradora de rua? Nunca tinha visto por aqui. Ela não tinha pais? Desci a passarela e parei junto à amurada para observar.

Eu podia ver apenas a silhueta escura, mas a criança andava cambaleante, fazendo círculos em torno de um hidrante. Uma hora, parou e chutou o hidrante, grunhindo raivosamente. Sobressaltei-me. Não sabia o que devia fazer.

A criança parecia ainda não ter percebido a minha presença, e seguia resmungando sozinha. Vi que ela carregava algo na mão. Uma garrafa. E bebeu do gargalo.

Mas o que...?

A criança esvaziou a garrafa e parou, olhando para cima. Permaneceu assim por alguns momentos. Então, prostrou-se e começou a vomitar.

Fiz uma careta. Onde aquilo ia parar?

Após se recompor, a criança cambaleou até um poste e, com raiva, estourou nele a garrafa. Cuspiu no poste e começou a gritar. Sua voz era profunda e grave, mas ininteligível. Segurava a mão com força. Devia ter se cortado.

Vanitas: uma fatia de morteOnde histórias criam vida. Descubra agora