01: Coisas vivas morrem

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Ele morreu.

O pensamento não saía da minha cabeça. Era o tipo de ideia que me rondava diuturnamente, já não me lembro desde quando.

Está morto. Acabou. Desligou. E não vai ligar de novo nunca mais.

Eu estava atrasado para o trabalho, correndo e discutindo com meus pais no celular quando aconteceu. Ia atravessar a rua sem olhar, e quase fui atropelado.

Tudo aconteceu muito rápido: meu passo apressado assustou o gato laranja que tentava comer uma carniça à beira da rua. Ele disparou para o outro lado, e acabou encontrando o destino do qual eu escapei por um fio de cabelo. O ônibus seguiu seu trajeto normalmente, sem sequer perceber. O susto me fez cair sentado na calçada, o celular voando longe. O sinal ficou verde e o mar de gente começou a atravessar a faixa. E eu fiquei lá, observando os derradeiros momentos agonizantes do bichinho.

Um olho havia saltado, e era possível ver os nervos junto ao sangue espalhado no asfalto. Com o que sobrara, ele me encarava desesperado, como se pedisse, como se suplicasse... como se eu pudesse fazer algo. Como se algo pudesse ser feito. Um olho grande e amarelo. Talvez muito maior do que deveria parecer, porque, além de morto, o gato estava tremendamente magro. As costelas, agora estraçalhadas, atravessavam a carne que se esfarelava e se misturava à pele esmagada entre as pequenas pedrinhas do calçamento. Havia restos de gato por umas três faixas. E ele era pequeno. E laranja. Gatos crescem rápido, então aquele não devia ter completado ainda nem o primeiro ano de vida. Uma vida breve, de fome, maus tratos e solidão. E agora, um sofrimento excruciante antes do fim.

Antes do quê? De desligar. Desaparecer para sempre. Não havia céu dos gatos. Ele simplesmente desparecera, e era isso.

As pessoas passavam como se nada tivesse acontecido. No máximo davam uma volta curta, evitando pisotear o gato, não por pena ou dó, mas por nojo.

Morreu.

Eu me levantei e me endireitei, mas não conseguia parar de olhar para o gato. Vi quando seu olho remanescente ficou opaco e estático, e ele parou de se tremer. O sinal fechou de novo e os carros começaram a passar. A cabeça do gato foi estraçalhada algumas vezes. Até o fim do dia, haveria ali apenas uma carcaça seca com menos de um centímetro de espessura. Com sorte, seria raspado do asfalto e jogado em algum lixão antes do fim da semana.

Se bem que, sorte pra quem? O gato não estava mais vivo, ele não podia sequer pensar ou observar as coisas de um ângulo exterior, para querer raciocinar e se sentir feliz por não ter seus restos mortais planos profanados por dias a fio. Imediatamente após a sua morte, o mundo seguiu em frente e esqueceu que ele um dia existiu. O gato laranja não seria lembrado por ninguém.

Exceto por mim, que não vou conseguir dormir hoje à noite pensando nele.

Sequer consigo me concentrar no trabalho agora, com a memória daquele olho suplicante encarando a infinita distância entre nós. Como ele teria enxergado o mundo, quando vivo? Dizem que os gatos têm os bigodes e pelos das orelhas muito sensíveis. Seria uma felicidade que essas partes não foram esmagadas antes de ele morrer?

Um dedo estalou ao meu ouvido.

Bora, Dai!

Eu olhei para cima. Era Benevides.

– Tá fazendo o que aí, meu bom? Pensando na morte da bezerra?

Não exatamente. Se bem que não tenho espaço no momento pra mais essa.

– Vamo que esse projeto é pra sábado agora! – Ele saiu batendo palmas e encorajando o resto da equipe. – Vamo lá, pessoal, que no final da semana eu pago a pizza!

– Cara chato da porra, hein? – comentou Sammy. Ela senta ao meu lado.

Eu não respondi, porque é um pouco difícil defender Benevides. Quer dizer, ele é chato. Mas também é mal compreendido. Às vezes ele só quer ter amigos. Daí precisa se exibir à procura de constante autoafirmação.

– Vai um café aí, Dai?! – ele gritou da cozinha.

– Não, obrigado – tentei não gritar.

– Eu quero! – Sammy gritou ainda mais alto que ele.

– Eu não te ofereci! – veio a resposta.

– Pois vai tomar no cu, gordo arrombado – ela falou só pra mim, com um sorrisinho. Eu forcei uma risadinha em resposta. – Tu é legal demais com ele. Mais do que esse otário merece.

– Não acho que ele seja otário. Ele só tá fazendo o que acha que é o trabalho do supervisor. Ele nem pega tanto no nosso pé.

– É – Sammy suspirou. – Tu acredita que ele dava em cima de mim, quando entrei aqui?

– Ninguém é obrigado a adivinhar a sua sexualidade, Sammy.

– Sim, mas – ela apontou para o próprio corpo. Sammy era uma garota pequena, magrinha e quase sem peito. Ela gostava de dizer que era uma pessoa compacta. Tinha os cabelos pretos lisos cortados à altura do ombro no que ela chamava de corte lésbico. Era minha colega de faculdade, mas só passamos a ser um pouco mais próximos quando começamos a trabalhar no mesmo escritório. Ela era uma dessas pessoas cuja idade é impossível de adivinhar. Podia ter entre dezessete e trinta e cinco anos.

– Mas o quê?

Tsc. Deixa pra lá. Tu é homem.

Dei de ombros.

– Aqui, gata! – Benevides brotou atrás de nós, pousando uma xícara de café quente sobre um pires no espaço de Sammy. – Preto, né?

– Obrigada, lindo! – Sammy atirou um beijinho, e ele foi embora satisfeito.

Ergui uma sobrancelha pra ela.

– Que foi? Quem não se cuida não se cria. – Ela tomou um trago.

– Ele tá tentando ser legal com você. Ele até lembra como você gosta do café.

– É verdade. Eu sou muito chata com isso. Escuta, tu devia ir naquela festa comigo no Casarão, domingo.

– Por quê? – estranhei. – Isso foi meio do nada.

– É que eu não sabia como introduzir o assunto, então arrombei de uma vez.

– Eu não curto muito festas. – Tentei me dedicar aos códigos incompletos na minha frente, esperando que Sammy entendesse que esse era o final da conversa. Ela não entendeu.

– Dai, teu problema é que tu pensa demais. Precisa beber um pouco. Usar droga.

– Para com isso – eu falei rindo, dispensando a brincadeira. Esperando que fosse uma brincadeira.

– Sério. A gente ainda não bebeu junto. Como você pode se chamar de meu amigo?

– Samantha! – a voz de Benevides se fez ouvir do outro lado do escritório. – Menos conversa e mais trabalho! Deixa pra conversar na confraternização de sábado!

Deixa pra conversar na confraternização de sábado – ela imitou ele baixinho. Dessa vez eu ri de verdade.

– Por que você não chama o Benevides? Com certeza ele iria.

– É doido?! Quer que eu cometa suicídio? O único lugar que eu vou levar esse trouxa junto é quando eu pular de uma ponte.

Morte.

– Okay, chega. – Antes de perceber, eu já tinha perdido o riso. – Podemos falar sobre isso mais tarde? Temos que terminar isto aqui.

– Tá bom. – Sammy não pareceu se dar conta do meu incômodo. – Mas você não me escapa!

Eu achei que já tinha esquecido do gato, mas é claro que eu o reencontraria no caminho de volta pra casa. Tentei não olhar, mas era difícil. Fim de tarde, já tinha uma nuvem de moscas disputando seus valiosos nutrientes. Pensei em como o gato estivera comendo carniça antes de morrer, e que era exatamente o mesmo que as moscas estavam fazendo agora; e que quando eu mato uma mosca, eu não lamento.

Preciso comprar uma moto. Nem que seja uma cinquentinha.

Eu estava certo. O gato não saiu da minha cabeça naquela noite.

Vanitas: uma fatia de morteOnde histórias criam vida. Descubra agora