Ele morreu.
O pensamento não saía da minha cabeça. Era o tipo de ideia que me rondava diuturnamente, já não me lembro desde quando.
Está morto. Acabou. Desligou. E não vai ligar de novo nunca mais.
Eu estava atrasado para o trabalho, correndo e discutindo com meus pais no celular quando aconteceu. Ia atravessar a rua sem olhar, e quase fui atropelado.
Tudo aconteceu muito rápido: meu passo apressado assustou o gato laranja que tentava comer uma carniça à beira da rua. Ele disparou para o outro lado, e acabou encontrando o destino do qual eu escapei por um fio de cabelo. O ônibus seguiu seu trajeto normalmente, sem sequer perceber. O susto me fez cair sentado na calçada, o celular voando longe. O sinal ficou verde e o mar de gente começou a atravessar a faixa. E eu fiquei lá, observando os derradeiros momentos agonizantes do bichinho.
Um olho havia saltado, e era possível ver os nervos junto ao sangue espalhado no asfalto. Com o que sobrara, ele me encarava desesperado, como se pedisse, como se suplicasse... como se eu pudesse fazer algo. Como se algo pudesse ser feito. Um olho grande e amarelo. Talvez muito maior do que deveria parecer, porque, além de morto, o gato estava tremendamente magro. As costelas, agora estraçalhadas, atravessavam a carne que se esfarelava e se misturava à pele esmagada entre as pequenas pedrinhas do calçamento. Havia restos de gato por umas três faixas. E ele era pequeno. E laranja. Gatos crescem rápido, então aquele não devia ter completado ainda nem o primeiro ano de vida. Uma vida breve, de fome, maus tratos e solidão. E agora, um sofrimento excruciante antes do fim.
Antes do quê? De desligar. Desaparecer para sempre. Não havia céu dos gatos. Ele simplesmente desparecera, e era isso.
As pessoas passavam como se nada tivesse acontecido. No máximo davam uma volta curta, evitando pisotear o gato, não por pena ou dó, mas por nojo.
Morreu.
Eu me levantei e me endireitei, mas não conseguia parar de olhar para o gato. Vi quando seu olho remanescente ficou opaco e estático, e ele parou de se tremer. O sinal fechou de novo e os carros começaram a passar. A cabeça do gato foi estraçalhada algumas vezes. Até o fim do dia, haveria ali apenas uma carcaça seca com menos de um centímetro de espessura. Com sorte, seria raspado do asfalto e jogado em algum lixão antes do fim da semana.
Se bem que, sorte pra quem? O gato não estava mais vivo, ele não podia sequer pensar ou observar as coisas de um ângulo exterior, para querer raciocinar e se sentir feliz por não ter seus restos mortais planos profanados por dias a fio. Imediatamente após a sua morte, o mundo seguiu em frente e esqueceu que ele um dia existiu. O gato laranja não seria lembrado por ninguém.
Exceto por mim, que não vou conseguir dormir hoje à noite pensando nele.
Sequer consigo me concentrar no trabalho agora, com a memória daquele olho suplicante encarando a infinita distância entre nós. Como ele teria enxergado o mundo, quando vivo? Dizem que os gatos têm os bigodes e pelos das orelhas muito sensíveis. Seria uma felicidade que essas partes não foram esmagadas antes de ele morrer?
Um dedo estalou ao meu ouvido.
– Bora, Dai!
Eu olhei para cima. Era Benevides.
– Tá fazendo o que aí, meu bom? Pensando na morte da bezerra?
Não exatamente. Se bem que não tenho espaço no momento pra mais essa.
– Vamo que esse projeto é pra sábado agora! – Ele saiu batendo palmas e encorajando o resto da equipe. – Vamo lá, pessoal, que no final da semana eu pago a pizza!
– Cara chato da porra, hein? – comentou Sammy. Ela senta ao meu lado.
Eu não respondi, porque é um pouco difícil defender Benevides. Quer dizer, ele é chato. Mas também é mal compreendido. Às vezes ele só quer ter amigos. Daí precisa se exibir à procura de constante autoafirmação.
– Vai um café aí, Dai?! – ele gritou da cozinha.
– Não, obrigado – tentei não gritar.
– Eu quero! – Sammy gritou ainda mais alto que ele.
– Eu não te ofereci! – veio a resposta.
– Pois vai tomar no cu, gordo arrombado – ela falou só pra mim, com um sorrisinho. Eu forcei uma risadinha em resposta. – Tu é legal demais com ele. Mais do que esse otário merece.
– Não acho que ele seja otário. Ele só tá fazendo o que acha que é o trabalho do supervisor. Ele nem pega tanto no nosso pé.
– É – Sammy suspirou. – Tu acredita que ele dava em cima de mim, quando entrei aqui?
– Ninguém é obrigado a adivinhar a sua sexualidade, Sammy.
– Sim, mas – ela apontou para o próprio corpo. Sammy era uma garota pequena, magrinha e quase sem peito. Ela gostava de dizer que era uma pessoa compacta. Tinha os cabelos pretos lisos cortados à altura do ombro no que ela chamava de corte lésbico. Era minha colega de faculdade, mas só passamos a ser um pouco mais próximos quando começamos a trabalhar no mesmo escritório. Ela era uma dessas pessoas cuja idade é impossível de adivinhar. Podia ter entre dezessete e trinta e cinco anos.
– Mas o quê?
– Tsc. Deixa pra lá. Tu é homem.
Dei de ombros.
– Aqui, gata! – Benevides brotou atrás de nós, pousando uma xícara de café quente sobre um pires no espaço de Sammy. – Preto, né?
– Obrigada, lindo! – Sammy atirou um beijinho, e ele foi embora satisfeito.
Ergui uma sobrancelha pra ela.
– Que foi? Quem não se cuida não se cria. – Ela tomou um trago.
– Ele tá tentando ser legal com você. Ele até lembra como você gosta do café.
– É verdade. Eu sou muito chata com isso. Escuta, tu devia ir naquela festa comigo no Casarão, domingo.
– Por quê? – estranhei. – Isso foi meio do nada.
– É que eu não sabia como introduzir o assunto, então arrombei de uma vez.
– Eu não curto muito festas. – Tentei me dedicar aos códigos incompletos na minha frente, esperando que Sammy entendesse que esse era o final da conversa. Ela não entendeu.
– Dai, teu problema é que tu pensa demais. Precisa beber um pouco. Usar droga.
– Para com isso – eu falei rindo, dispensando a brincadeira. Esperando que fosse uma brincadeira.
– Sério. A gente ainda não bebeu junto. Como você pode se chamar de meu amigo?
– Samantha! – a voz de Benevides se fez ouvir do outro lado do escritório. – Menos conversa e mais trabalho! Deixa pra conversar na confraternização de sábado!
– Deixa pra conversar na confraternização de sábado – ela imitou ele baixinho. Dessa vez eu ri de verdade.
– Por que você não chama o Benevides? Com certeza ele iria.
– É doido?! Quer que eu cometa suicídio? O único lugar que eu vou levar esse trouxa junto é quando eu pular de uma ponte.
Morte.
– Okay, chega. – Antes de perceber, eu já tinha perdido o riso. – Podemos falar sobre isso mais tarde? Temos que terminar isto aqui.
– Tá bom. – Sammy não pareceu se dar conta do meu incômodo. – Mas você não me escapa!
Eu achei que já tinha esquecido do gato, mas é claro que eu o reencontraria no caminho de volta pra casa. Tentei não olhar, mas era difícil. Fim de tarde, já tinha uma nuvem de moscas disputando seus valiosos nutrientes. Pensei em como o gato estivera comendo carniça antes de morrer, e que era exatamente o mesmo que as moscas estavam fazendo agora; e que quando eu mato uma mosca, eu não lamento.
Preciso comprar uma moto. Nem que seja uma cinquentinha.
Eu estava certo. O gato não saiu da minha cabeça naquela noite.
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Vanitas: uma fatia de morte
FantasiDaisuke é um jovem adulto cheio de ansiedades existenciais, que vive contemplando a morte e a natureza efêmera de todas as coisas. Na sua tentativa de navegar por uma existência aparentemente insignificante, ele tem vários encontros com personagens...