O homem da pele preta se chamava Mornedhel. Ele disse que não era realmente seu nome de nascença, mas já tivera muitos nomes ao longo da vida, e esse era o último pelo qual tinha sido chamado pelas últimas fadas. Eu não entendi bem o que aquilo queria dizer, mas não perguntei.
– Mas você pode me chamar do que quiser – ele acrescentou.
Ficamos conversando coisas das quais já nem me lembro, na escada da praça, até a noite ficar deserta. Meu estado alterado de consciência, recobro mais as sensações que qualquer outra coisa. Uma hora, ele levantou e começou a andar, e eu apenas o segui.
Mornedhel tinha o riso fácil e um interesse infinito em muitas coisas mundanas e ordinárias. Falei do meu trabalho e dos meus amigos, o chefe que Sammy não suportava e sua falta de tato em festas; do meu acordo com Anastácia no mês passado e de César, que não conseguia morrer; de Felipe com seu braço biônico, e a garota da festa, cujo nome eu não tinha perguntado. Até dos meus pais, com quem eu vinha falando cada vez menos, enquanto eles cada vez mais só sabiam falar do meu irmão. Lembro de tocar em todos esses assuntos superficialmente, e uma música em inglês que não saía da minha cabeça.
Acho que não estávamos indo para nenhum lugar específico, porque eu já não fazia nenhuma ideia de em que parte da cidade estávamos quando Mornedhel parou de andar e falou:
– Foi bom conhecê-lo, Daisuke. Espero que nos encontremos novamente.
– Aonde você vai? – perguntei, parando alguns passos à frente. Na escuridão entre os prédios altos, eu tinha dificuldade de discernir seus traços quase invisíveis.
Ele não respondeu. Apenas sorriu, aqueles dentes branquíssimos refletindo a parca luz da Lua. A noite começava a clarear. Ele ergueu os olhos amarelos para o céu e disse:
– Realmente não posso mais ficar aqui. Até outra noite.
Com isso, deu alguns passos para trás, desaparecendo na sombra de um edifício. Em momentos, minha mente desanuviou significativamente, e senti meu tato retornar. Uma sensação que eu nunca tinha experimentado igual, de ser preso numa caixa de chumbo. E essa caixa era meu próprio corpo.
– Ei – chamei, em vão. – Mornedhel? Ei!
Forcei a vista na noite e procurei por ele, mas não estava em lugar nenhum. Andei de lá pra cá, mas não havia nenhum beco ou viela no qual ele pudesse ter se enfiado. Um poste acendeu sobre a minha cabeça – uma luz solitária na rua estreita –, e eu vi que, tão longe quanto podia enxergar, para ambos os lados, eu era o único ser vivo. Era como se ele tivesse simplesmente se dissipado nas sombras, sem deixar rastro.
Esfreguei os olhos e me perguntei se tudo não tinha sido uma alucinação. Talvez eu tivesse comprado drogas estragadas de alguma boca qualquer e fabricado tudo aquilo. Sammy mal poderia esperar para ouvir a respeito.
Dei meia-volta e continuei andando. O mundo se movia vagarosamente à minha volta, e eu sentia cobrir uma distância muito maior que o normal, flutuando entre um passo e outro. A maior parte da minha consciência tinha voltado, mas meu corpo ainda não estava no estado normal. E eu ainda precisava encontrar o caminho pra casa na noite vazia.
Mas não demorou muito para encontrar companhia.
Assim que dobrei a primeira esquina, mais à frente podia ver, numa rua mais iluminada, um grupo de silhuetas reunidas. Debati comigo mesmo brevemente se devia tomar aquele caminho ou procurar outro, mas, com receio de me perder ainda mais entre os prédios, achei que seria mais inteligente voltar a alguma avenida o quanto antes. Assim, segui em frente. Não precisei chegar até lá para que me vissem.
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Vanitas: uma fatia de morte
FantasyDaisuke é um jovem adulto cheio de ansiedades existenciais, que vive contemplando a morte e a natureza efêmera de todas as coisas. Na sua tentativa de navegar por uma existência aparentemente insignificante, ele tem vários encontros com personagens...