O alarme do celular tocou, mas foi como se eu já estivesse desperta. Alguns raios de sol rebeldes tentavam atravessar os vãos da janela, mas nada disso era realmente relevante para mim.
Em meu estômago, habitava um frio terrível e, no coração, um vazio indescritível.
Havia chorado muito durante aquela noite. Depois de todo o show, Anfitrite me indagara se eu gostaria de continuar sendo sereia. Fiquei um pouco chocada, pois, quando nos conhecemos, Naia havia dito que minha identidade de sereia era irreversível. Diante da confusão, ela se explicou alegando que não tinha conhecimento da possibilidade de se retirar os fragmentos do lito-ictio da corrente sanguínea.
De qualquer maneira, pra mim não fazia mais diferença. Sendo ou não sereia, eu era eu, acima de tudo. Fora que aquela vida de amiga da água havia me ensinado muitas lições, tanto com os animais quanto com o planeta. Não estava a fim de perder a oportunidade de conversar com o Glub ou fazer meus sucos ficarem gelados mais rápido.
No final das contas, decidi permanecer sendo metade peixe e metade humana.
Contudo o que realmente fazia meu peito se contorcer de uma maneira chegava a doer era algo significativamente mais profundo e depressivo.
Eu não vira seu corpo. Não presenciara seu fôlego de vida somado ao sangue se esvaindo gradativamente. Não tocara seu rosto pálido antes de dizer adeus. E não importava o quanto eu desejasse: Ele também não iria voltar.
Nunca mais iria escutar suas broncas, suas piadas de tiozão, suas reclamações sobre os alunos chatos dos colégios onde ele trabalhava, nem sua explicação "química" do porquê os bolos da mamãe eram tão gostosos.
Minha mãe ainda não sabia. Mateus não devia sequer ter acordado.
Bem lá no íntimo do meu ser, eu rezava para que, pela primeira vez na vida, ao menos aquele pesadelo não passasse do fruto de uma noite mal dormida.
Me recusava a abrir os olhos. Eles deviam estar tão inchados, doloridos e vermelhos que nem mesmo o melhor corretivo do mundo seria capaz de esconder tamanho desastre.
Quando finalmente percebi que se não levantasse naquele momento não iria sair da cama nunca, meus pés procuraram os chinelos no chão gelado e, ao encontrarem, se apertaram para entrarem nos mesmos.
Quase me desequilibrando com a tentativa de me erguer, apoiei a mão rapidamente na parede próxima à janela.
Dei um longo suspiro. Eu precisava pelo menos tentar parecer bem.
Tendo o corpo ainda mole, atravessei o quarto da kitnet e pus a mão na maçaneta.
Uma parte de mim nutria a esperança infantil de abrir aquela porta e encontrar meu pai ali na sala, conversando com meu irmão sobre qualquer coisa.
Não importava o assunto.
Somente a imagem do seu sorriso já era o suficiente para aquecer um pouco meu coração, que agora estava tão sem graça.
Um nó se enroscou na minha garganta e controlei o impulso quase invencível de me entregar às lágrimas mais uma vez.
Se controle, Clara...
Tomei fôlego. Eu estava pronta.
Abri a porta, mas precisei me apoiar nela de novo para não cair para trás como quem tem um ataque cardíaco.
— Você pode, por favor, me passar logo a manteiga de amendoim, Mateus? Eu tô há quase meia hora aqui com a mão estendida tentando pegar ela. — Uma figura semelhante ao meu pai quase bufou quando meu irmão abobalhado saía de um riso.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Tudo Começou Aqui [Concluído]
FantasyMaria Clara tinha uma vida de adolescente quase normal. Terceiro ano do Ensino Médio, uma melhor amiga, um irmão mais velho chato, uma mãe louca, um pai implicante, colegas idiotas na escola e uma coisa detestável chamada "invisibilidade social". P...