Névoa, Carvão e cicatrizes.

99 19 3
                                    

~Fiel~

A morte me rondou mais uma vez na vida, como se soubesse que escapei de suas mãos quando era apenas um lobo solitário. Se eu tivesse morrido na primeira vez não teria conhecido o mestiço, não passaríamos por tudo aquilo e ele certamente teria sido extinguido na floresta perto de seu vilarejo. Mas o destino ainda é um mistério para todos, e ali estávamos nós dois juntos e nos curando de ferimentos graves, enquanto eu tomava coragem para contar ao rapaz sobre o massacre que ele causou na primeira noite de lua cheia.

No início da tarde, deitei-me sobre uma tábua corroída que estava jogada na frente do casebre, observando o mestiço mexendo nos canteiros de hortaliças junto com a mulher. Seus cabelos brilhavam mais dourados com a luz do sol e seu rosto possuía um vermelho sutil pelo calor. Depois de três semanas Luahn parecia completamente saudável. Mas as roupas largas faziam-me lembrar de quando foi uma fêmea, porém, no caso, usava roupas de um homem grande dadas pela Carlyne. Ele parecia feliz com a humana, apesar dela mal corresponder aos seus sorrisos e conversa.

Desde que minha plena consciência retornou fui atormentado pelas cenas e cenários daquela noite de sangue quando dormia. Havia momentos que eu era o lobo partido, o engolido, o mordido, o pisado, o que caia do barranco para as águas frias ou aquele que era pego por garras e mutilado por ódio sem que a morte me acalcasse rapidamente. Por dias tive certo medo de ver Luahn ser tornar aquela fera novamente e acabar o desafio que propus, mas pelo jeito que me tratava, o como sempre, e se aguentava para saber o que aconteceu, ele não se lembrava de nada.

Era uma paz e calmaria que apreciava e que remediou meus sonhos, mas a verdade poderia acabar com alegria do rapaz e seu jeito bom. Estando como lobo, o mestiço não investia flerte algum, mas eu notava alguns olhares pra mim, ele desejava me ver da outra forma e eu lutava fortemente para não obedecer, pois uma pequena parte de mim tinha receio sobre os ferimentos e como eles se comportariam com a mudança.

De repente, Luahn levantou-se do meio das abóbora e olhou diretamente para mim, parecendo saber que pensava nele, e piscou um olho liberando um sorriso torto que me fez mover um pouco desconfortável, contendo rápido um movimento denunciante de minha cauda. Era uma coisa nova ter uma sensação agitando-se em mim quando ele fazia coisas assim, algo que me lembrava da empolgação que sentia quando era filhote e a mãe chegava de alguma viagem de caçada, mas era diferente.

Distrai-me dele, vigiando os arredores do terreno de plantação. Além da cerca de tronos secos, tortos e velhos só havia o muro de árvores verdes e o sons da floresta. No terreno havia um celeiro não muito longe da casa, onde tentadoras galinhas corriam ao redor e um porco malhado vivia preso no mesmo cercado do velho cavalo monótono, o dos dois tinha uma entrada para o deposito de forma que podiam se abrigar sozinhos.

No ar veio um cheio familiar e vasculhei novamente o panorama. Numa distante junta da cerca havia um lobo escuro encarando-me e hesitando avançar sobre os canteiros. Ele balançou de leve a cauda caída ao encontrar meu olhar e depois observou os humanos distraídos. Levantei-me e fui até ele com passos rápidos, a irmã branca logo surgiu assistindo-me chegar.

Só faltavam alguns metros e eles avançaram agitados e felizes:

“O senhor está vivo!” o macho falou dando uma volta ao meu redor com leves saltos e a irmã veio de cabeça baixa, contida, mas igualmente feliz, e ambos roçando-me e buscando uma lambida, me esquivei do que pude da recepção.

“O que fazem aqui?” questionei, após liberar um rosnado rápido que os fez sossegarem.

“Nós o seguimos, senhor, e encontramos uma árvore com seu sangue!” a loba branca contou assombrada. “Tivemos dificuldades em achá-lo, estávamos preocupados. Toda a floresta na parte superior sudeste é uma confusão de sangue e corvos. É um péssimo cenário, mas meu irmão conseguiu uma pista e levamos dias para chegarmos por aqui.”

O Lobo-Homem e o Feiticeiro MestiçoOnde histórias criam vida. Descubra agora