É um dia cinza, eu sei que é. Antes mesmo de abrir as pálpebras de meus olhos, a consciência sonâmbula desperta meu corpo de outra forma. Constato que tudo é unicolor porque não sinto o calor que irradiava dela todas as manhãs ao meu lado, não sinto seu corpo colado ou toques singelos em minhas mãos, não escuto o leve barulho de sua respiração. Então tenho certeza ao me levantar, que ela foi embora e levou minhas cores.
Poderia ter tirado meu tato, paladar, olfato. Até mesmo ter levado a televisão, a geladeira, meu dinheiro, meu prestígio, minhas roupas, meus sapatos, o carro, a estante, as lâmpadas de casa. Ou aquelas joias de minha mãe, os velhos quadros afortunados de meu pai, o cordão de ouro de meu irmão, o cheque sem fundo que titio deixou. Ela decidiu levar minhas cores.
Arquejo minhas costas, e de repente até mesmo este simples gesto de alongamento se torna uma expressão da falta que meu corpo sente delas. Os braços encontram-se flácidos, as pernas mal sustentam, minha pele torna-se ressecada e meu bocejo vira um grito de dor. Que desespero! Como me faltam as secundárias.
Ao sair para regar as plantas, o Velhote cachorro corre aos meus pés e me desequilibra. Como queria que me segurassem, que caísse em um enlaço. Até as flores zombam-me a face. Como posso viver desse jeito?
Vou até a vizinha da casa amarela ao lado, pois é uma pessoa gentil e não estranhará meu desabafo. Bato a sua porta quase sem fôlego, porque carrego uma xícara de café vazia e ela pesa. Ninguém atende. Bato tantas vezes e começo a me desesperar, ela é a única que poderia me dar o que tenho a pedir: as cores! Quando sinto alguns pingos de chuva no ombro, desisto e caminho de volta com as mãos sangrando, devo ter quebrado a xícara lá pela décima batida desenfreada.
Caminho vagarosamente, mas não paro em casa. Não, continuo andando. Do quintal escuto os latidos do Velhote, e é como se ele estivesse preocupadamente perguntando aonde eu vou nesse estado autodestruidor. Ando descalço pela calçada, e conforme os pingos de água ficam mais fortes eu fico mais fraco. As pessoas que se abrigam da rua com suas capas de chuva ou sombrinhas me olham com pena. Mas não os quero com seus olhares, não quero seu padecer de minha dor ou o sentimento de compartilhamento solitário do que um dia já viveram. Eles tem o que não tenho. De qualquer forma, sou incapaz de um dia recuperar o que já me foi privado.
O cimento é substituído por um campo esverdeado, estou quase lá. O vento ininterrupto me sopra na direção, no local desejado, estou voando. Jazendo aonde antes um corpo se fazia presente, em um súbito malfeito completou o ciclo, em um sopro de vida minhas asas caíram, meu corpo caiu, abraço a lápide ante a chuva que me abraça e me abriga, tempestuosa piedade que torna a dor. A enterraram com minhas cores. Já langoroso, amaldiçoado e abatido deixo que a morte me leve para junto dela.
E antes que a última lufada de ar saia de meus pulmões, antes que meu coração cesse de vez em uma batida dolorosa e eu apague em um sono infinito, imagino seu rosto. A vejo. Ela retorna para mim.
Em suas mãos estão as primárias, e quando ela me abraça todo o torpor e êxtase me carregam para um mundo onde nada é monótono ou descolorido, porque tudo nesse novo mundo é colorido por ela.
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Poeta Falho
شِعرO amor é um sentimento tão valorizado que transborda do coração para os versos.