Violência

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Nos últimos dias, a rotina da Casa mudou bastante. Voltei a trabalhar e conviver com as meninas. É possível falar de muitas coisas sobre nossos passados, mas, todas se recusam a falar sobre homossexualidade. Aparentemente, a palavra é proibida. E não é a única: esquerda, gênero... aos poucos se revela um pequeno panteão de demônios cuja menção é simplesmente vedada!

Quis me candidatar a uma vaga na equipe de caça que os militares formaram e estão treinando. Mas, não fui considerada estável o suficiente para pegar em armas. Previsível. Então, para continuar alimentando minha esperança de sair daqui, decidi controlar meus nervos. Quanto mais integrada consigo me fazer, mais vejo como as meninas sofrem por debaixo de sorrisos irretocáveis. Aos poucos, eu mesma moldo meus sorrisos por sobre um penar que aqui é inconfessável.

Não há funcionários na Casa. Pelo menos, não que tenhamos oportunidade de ver. Nós somos responsáveis umas pelas outras, tanto do cuidado como da vigilância, e isso deixa tudo mais complicado. Não quero entrar na equipe de caça porque simplesmente quero. Armas nunca foram a minha praia! Mas, é a minha chance de colocar em prática meu plano de fuga.

Os dois soldados que estão fazendo o treinamento da equipe de caça acamparam fora da nossa clareira, pois homens só são admitidos aqui em caráter muito excepcional (como nos ataques de queixadas e onça). As meninas da equipe de caça chegam animadas. Aprenderam tiro, que praticam diariamente, e também técnicas básicas para seguir rastros na mata.

— Raísa! — é a voz de Rosa. Já sei até o que é — Hora do remédio!

Retiro uma das luvas, enfio a mão num dos bolsos, retiro o minúsculo objeto e a ergo bem alta, me certificando de que ela veja o comprimido. Só então, o coloco na boca. Eu gostaria de não engolir esta porcaria, de poder cuspir fora na primeira oportunidade. Mas, ele dissolve na saliva! Sei que daqui a pouco ficarei grogue, mas, já é melhor do que na semana passada, pois venho baixando de três para uma a dose diária. Assim também foi com os curativos das escaras, reduzidos aos poucos até que, há dois dias, eu não precisei mais deles.

— Parabéns, Raísa! Esse foi o último!

A voz veio do meio das mulheres. Levanto a cabeça para ver se identifico de quem era, mas, todas pararam de trabalhar e estão olhando para mim, com ar de aprovação. Todas! Por favor, parem de olhar para mim! Essa falsa simpatia coletiva me apavora! Meu coração está acelerado! Não posso confiar em ninguém! Sinto palpitações no coração. Será que todas — menos eu — sabem de mínimos detalhes do meu tratamento? Começo a hiperventilar.

Mas, creio que consigo me segurar e não expressar o que sinto. Sorrio de volta, como se estivesse satisfeita com a notícia. Meu Deus! Estou me tornando uma delas!

Ao longe, ouvimos os tiros. As meninas da equipe de caça estão treinando, e já quase não notamos, de tão habituais que se tornaram. Mas, eis que um dos tiros é seguido de um grito agudo e desesperado.

Todas paramos.

Olhamos pro lado de onde veio o grito, como se não houvesse metros e mais metros de mata cerrada entre nós e o acampamento. O silêncio é perturbador, e é entremeado por gritos menores, mas, persistentes da mesma voz.

— É Dalia?

— Não, é Samara!

As meninas finalmente conversam entre si, quando a voz começa a converter seus gritos em um gemido de dor, cada vez mais próximo.

— O grito alto era de Dalia.

— Mas, eram duas vozes gritando. Escuta. É Samara quem está gemendo de dor.

— Sâmila, aciona a enfermaria, que ela deve estar ferida.

E de fato não demorou para aparecerem ao portão, transportando Samara em uma maca improvisada. Ela passa perto de nós, no jardim, rumo à enfermaria. Não dá para entender o que houve realmente, mas, há muito sangue escorrendo da perna, e pingando no chão, em todo o caminho.

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