Planos

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Estou há algumas semanas treinando. Os primeiros dois dias foram maçantes, com exercícios inacabáveis de montagem, desmontagem, limpeza e manutenção das armas e, claro, cuidados e procedimentos para evitar acidentes como o de Samara. Mas, ouvimos as queixadas ao longe, no terceiro dia, e estivemos a um passo do pânico geral. Isso parece ter acelerado o sentimento de urgência, pois desde então tenho gasto horrores em munição, com alvos parados, móveis, múltiplos, grandes, pequenos, de perto e de longe. Não só eu, claro! Surpreende-me que confiem tanto na gente. Se nos unirmos, podemos facilmente abater os trinta soldados.

Penso na ironia absurda dessa proposição, e sorrio com desprezo. O trabalho coordenado e unido como eles querem que façamos poderia ser a maior arma contra seu sistema! Mas, é inexequível. Essas meninas já foram convertidas. Elas são fanáticas, ou no mínimo convencem em parecê-lo! Não sei se posso confiar em qualquer uma delas. Muito provável que não! Já como um reflexo, ao ver meus alvos levantarem voo, dou mais uma série rápida de cinco tiros, e abato cinco pássaros no ar. Passei no último teste com louvor!

Abaixo a arma, recebo os abraços das meninas e comemoro brevemente. Todo animal derrubado deve ser incorporado às nossas refeições, em vez de apodrecer malcheirosamente ou, pior, atrair predadores. Então, enquanto elas vão pegar as aves abatidas, aproveito sua distração e me afasto. Creio que tenho alguma virose, ou não estou me dando bem com toda a química que nos estão empurrando, com gases, medicamentos, vitaminas e sabe lá o que mais nos enfiam sem que saibamos! Ou pode ser porque não consegui mais me livrar do nojo que tenho de meu corpo desde o estupro. A repulsa é tanta, que mesmo após horas esfregando sabão ou esponja, nada faz passar a sensação de podre, a sensação de que eles ainda estão dentro de mim, renovada a cada manhã! O que sei de fato é que tenho tido pequenos enjoos, diariamente. Dessa vez, o enjoo é mais intenso, e preciso me esconder para vomitar. Não posso deixar que me vejam com qualquer fragilidade, com qualquer fraqueza. Estou "integrada", e não posso correr esse risco.

Já passamos de um mês desde que eu entrei para o grupo. Hoje, me reconhecem como vocacionada para essa tarefa. O treinamento está dado por encerrado. A Brigada está pronta. Trancam todas as armas e uma carga de munição suficiente para repelir um ataque de centenas de animais. Como a Brigada de Defesa é pequena, e não tem atividades permanentes, cada uma de nós recebeu uma chave do cofre onde está guardado o arsenal (duas são necessárias para abrir o cofre), e voltamos às nossas atividades regulares.

— Que bom que você voltou pra nós! — me recepciona Rosa na pequena estufa, construída na minha ausência — O jardim até parece mais florido!

Deus do céu, como eu vou sentir sua falta, Rosa! Eu tinha que me apaixonar, aqui dentro?! Que inferno! Será que você fugiria comigo?

Os militares que estavam nos acompanhando, para meu alívio, estão partindo hoje. Já recolheram seus pertences. Um deles parecia ter esperança de dormir com uma das meninas, mas, pelo ar frustrado, não deve ter conseguido. Tenho impressão de que teria sido bom. Afinal, ela estaria "curada". Para sair daqui, eu encararia uma farsa? Certamente. Ou não. Quantas vezes teria que me submeter a ter relações? Seria menos estupro se eu consentisse contra a minha vontade?

— Ei! Minha melhor aluna não vai me dar um abraço? — o Tenente Bezerra arranca-me de meus pensamentos, ruidosamente — Só não deixa as meninas saberem que penso assim... Podem ficar com ciúmes! — Sussurra.

O Tenente Bezerra é boa praça. Simpático, divertido. Talvez, em outro contexto, fôssemos bons amigos. Mas, não. Ele é uma engrenagem do sistema como qualquer outra, e não é confiável! Estou só, não posso confiar em ninguém! Mantenho meu disfarce e lhe dou um abraço educado. Até sorrio, digo que sentirei falta deles, e espero visitas. Sei que jamais virão, não é assim que funciona. Todos sabemos! Mas, isso ajuda na farsa. Na minha e na deles. Repito o ritual, com pequenas variações. "Vão logo embora!" não paro de pensar, "Não consigo mais disfarçar o enjoo por muito tempo!". Na primeira oportunidade, corro para o banheiro e despejo boca afora toda a refeição que acabara de comer. Isso está ficando muito frequente, não conseguirei manter em segredo por muito tempo.

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