A Trigésima Sexta Carta

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Campos Verde, agosto de 2019

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Campos Verde, agosto de 2019

Moabe, a vida é uma caixinha de surpresas. 

É uma frase absolutamente batida, eu sei, mas também é completamente verdadeira. 

Há cinco dias, Mimi me ligou dizendo que uma amiga me traria uma encomenda do Haiti e eu precisava encontrar a tal amiga no Viracopos, ela entregaria apenas para mim a suposta encomenda e para mais ninguém. Na terça lá fui interromper meu artigo e ir para o aeroporto de Campinas, o voo com escala em Bogotá estava atrasado uma hora e meia devido o mau tempo da capital colombiana, quando eu havia decidido ir embora e pedir para Mimi se desculpar com a amiga eu vi uma mulher negra e mesmo com o semblante  exausto sorrir abertamente quando nossos olhares se encontram. Eu não acreditava no que meus olhos viam, mas ainda assim sorri tão genuinamente quanto ela e só quando se abraçou caminhando rapidamente na minha direção que minha ficha caiu. 

Seu vestido longo e leve e o cardigã azul céu era completamente inapropriado para o frio de dezessete graus das oito e meia de uma manhã gelada de agosto. A abracei antes mesmo de dizer qualquer coisa.

-- Você é maluca, Mimi! 

-- Também senti sua falta, Lala -- devolveu no mesmo tom que eu. Me surpreendendo com seu português completamente marcado pelo sotaque francês. Ri e ainda a apertando a provoquei sobre seu novo sotaque, ganhei apenas um revirar de olhos. E até dos seus constantes revirar  de olhos eu senti saudades, Mimi nunca havia ficado tanto tempo fora numa missão, para dizer a verdade o Haiti era sua primeira missão internacional longa, suas missões internacionais costumavam durar duas ou três semanas, no máximo, um mês, quando de repente, surpreendeu a todos dizendo que embarcaria para Porto Príncipe permanentemente por no mínimo um ano. E da mesma forma surpreendente estava de volta um ano e meio depois de ter embarcado.

Eu nunca fui muito friorenta, por isso imediatamente tirei meu casaco e o entreguei a Mimi, que parecia ter se esquecido completamente dos  invernos de Campos Verde e por isso dali do saguão do aeroporto seguimos para um shopping, o que imediatamente colocou um sorriso no rosto da minha prima, pois diferente de mim, ela sempre gostou de fazer compras, mesmo sabendo que era apenas consumismo no seu mais puro modo e por isso se sentia tão culpada por gostar de algo tão supérfluo. Mimi gostava de fazer compras, mas era consciente, não compramos nada na primeira loja que entramos, nem na segunda e menos ainda na terceira, onde um cardigã simples custava mais de duzentos reais, não ousamos perguntar o preço de um casaco. Desistimos das marcas famosas e entramos numa loja popular, que para delírio da minha prima estava praticamente inteira em liquidação, passamos a manhã inteira escolhendo e experimentando roupas, uma vez que toda a bagagem de Noemi se resumia a mochila que ela havia deixado no meu carro, a presenteei com dois casacos, uma toca, infinitas meias e um par de botas (que eu também comprei um par exatamente igual para mim, mas trinta e sete e não trinta e cinco), pois como esperado seu dinheiro era tão pouco que mal daria para ela pagar um hotel, ainda bem que ficaria na minha casa, para onde seguimos e eu descobri que meus pais já sabiam que ela estava a caminho e que o motivo do seu retorno não havia sido apenas saudade, mas medo.

Duas semanas antes, a base da igreja havia sido atacada e o pastor e metade dos irmãos feitos reféns, inclusive Mimi. Há um conflito político e nada dá mais ibope, nas palavras da própria Mimi, do que gente branca e de missão religiosa ser feita refém, porém, para frustração dos sequestradores, apenas um homem era branco, mas ainda foi aterrorizante passar dezoito horas com explosivos presos ao corpo e a deixou tão assustada que Noemi pediu para ser mandada para casa. Mimi contou ainda que escolheu não me falar nada e pediu para meus pais não falarem porque não queria nos preocupar, obviamente lhe dei uma enorme bronca a esse respeito, mas entendi o seu lado, talvez eu tivesse feito o mesmo.

Negligenciei meu artigo e me dediquei a Mimi durante toda a semana, a única coisa que mantive foram minhas visitas para Ruth, que acontecem três vezes na semana, afinal, tenho uma pós graduação para terminar. Noemi me acompanhou na minha visita de ontem e foi estranho perceber que Ruth e eu desenvolvemos uma rotina e piadas internas, foi a coisa mais estranha do mundo perceber que elas é que pisam em ovos e não nós três como acontecia seis meses atrás. Por isso iniciei essa carta com a famigerada afirmação sobre a vida ser uma caixinha de surpresas e não para por ai, ontem na volta para casa o mistério do SMS que supostamente mandei para Josafá quase dez anos atrás foi resolvido. Josafá de fato recebeu um SMS do meu celular, mas eu nunca escrevi essa mensagem, quem escreveu foi Mimi e logo depois o apagou.

Ela afirmou que havia ficado com raiva quando eu contei que tinha beijado Josafá, porque um ano antes  gostava dele e ele nunca lhe deu atenção ai eu cheguei e ele não apenas me deu atenção como também me beijou. E como ela sabia que eu iria embora em  poucas semanas não achou que seria um problema dizer para ele que eu me arrependi do nosso beijo, porém, quando me viu tão triste por causa dele ficou com vergonha de contar a verdade, até porque ela também estava muito brava comigo por ter beijado um garoto que namorava… Enfim, meu coração adolescente foi partido porque minha melhor amiga, que também é minha prima, escolheu não me contar quando gostou de um menino de verdade pela primeira vez. Ontem, quando ela me contou fiquei brava e tão chateada que fui dormir logo depois e hoje saí de casa antes dela acordar, mas agora, duas horas depois de ter chegado a biblioteca municipal e completamente sozinha percebi, Moabe, que eu fiquei chateada pela omissão dela e não pelo que ela fez de fato. 

Pelo menos essa minha versão adulta, a Laura de quatorze anos ficaria muito brava e teria passado vários dias sem falar com a Mimi, acho muito interessante quando eu observo minha maturidade e das pessoas ao meu redor, principalmente dos outros, é como ver flores desabrochando e é por isso que vou  chamar Mimi para me encontrar aqui na cidade para almoçarmos, pois vai nos fazer muito bem uma tarde de meninas marcada de conversas aleatórias e não necessariamente sérias. 

Com amor,
Laura

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Aos 49 do segundo tempo, mas ainda sábado eis a carta de hoje. Esperava isso da Mimi??

Não esquece a estrelinha, okay? Okay.
Beijos e chocolates,
Juliane Patricia, 05/10/2019

[CONCLUÍDO] CARTAS À MOABE - O Encontro de Uma Mulher Com Seu DeusOnde histórias criam vida. Descubra agora