30. MIKA

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"No que você está pensando?", Thales teve o ímpeto de quebrar o silêncio imperativo entre eles, que já completava trinta e sete longos minutos

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"No que você está pensando?", Thales teve o ímpeto de quebrar o silêncio imperativo entre eles, que já completava trinta e sete longos minutos. Não que ele estivesse contando, mas Mika estava deixando-o ansioso com o rosto branco como papel, a boca entreaberta sem proferir uma palavra há tanto tempo.

Ele começava a se questionar se aquilo tudo tinha sido uma boa ideia, para começo de conversa. Mika não era exatamente a pessoa mais forte que conhecia, e aquela situação era de arrepiar os cabelos até mesmo da garota mais resiliente. A coitada da Mika não tinha a menor das chances, mas a despeito delas, estava ali.

Mika não respondeu. Seus olhos encaravam, petrificados enquanto ela contava até dez mentalmente repetidas vezes, o anúncio na jardineira da janela da bela casa de estilo barroco, janelas ornamentadas em madeira e enorme quintal, fechado por uma cerca-viva bem cuidada e incontáveis flores coloridas. Era uma boa vizinhança, ela avaliou. Condomínio fechado, piscina, parquinho, quadra de esportes, o tipo de lugar que uma criança poderia crescer em segurança e os pais poderiam viver sem a importunação de achar que algo de errado está acontecendo com seus filhos a cada cinco minutos.

Era bastante diferente de seu apartamento mofado no bairro mais afastado de Aquino, onde ela sabia bem que não havia cercadinhos de areia e a tranquilidade necessária para que as crianças corressem livremente pela rua, como um grupo de pirralhos fazia por ali.

O ar escapou rapidamente de seus pulmões. Ela agitou a cabeça e deu uma boa olhada em seus próprios olhos escuros no espelho retrovisor. Um, dois, três... ela se obrigou a respirar direito enquanto contava, na esperança de que seu ritmo cardíaco voltasse ao normal.

Quatro, cinco, seis... a sufocante sensação de que, por mais que houvesse destruído a essência de Mika Vogelmann, dar sua filha em adoção havia sido a coisa certa a fazer era o que embaralhava seus pensamentos. Uma criança crescendo em um lugar como aquele poderia se tornar o que quisesse, teria todas as condições necessárias para tanto. Um engenheiro, um astronauta, um artista. Uma médica, uma advogada, uma cantora de sucesso. Qualquer coisa.

Sete, oito, nove... Imaginou sua menininha dando um beijo estalado na bochecha do pai, que chegava em casa do trabalho. Estava na mesa de centro da sala com a mãe, pintando as maçãs de vermelho e as uvas de roxo, cumprindo a tarefa de casa da pré-escolinha particular que frequentava, ainda vestindo suas sapatilhas de balé. Ela se animaria quando a mãe lhe contasse o que havia para jantar. Seu favorito: macarrão puro, sem molho nenhum. E avaliaria, com as sobrancelhas erguidas e uma expressão adorável de barganha no rosto, se valia a pena comer os vegetais que os pais tanto queriam, para ganhar mais trinta minutos na televisão antes de dormir.

Mika comparou aquela vida especulativa e imaginária à que provavelmente daria a sua menina, caso tivesse tomado outra decisão. As pessoas que haviam crescido nas condições em que a própria havia crescido tinham chances bastante limitadas.

Dez.

O golpe violento em seus pensamentos a trouxe de volta para a realidade.

"Fala comigo, Mika, eu preciso saber que você não teve um derrame ou coisa assim", Thales gesticulava com as mãos de maneira irritante, e sua voz parecia o zumbido de um inseto próximo demais à orelha.

Menina MalvadaOnde histórias criam vida. Descubra agora