15. Os hóspedes

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Os dias que antecederam a chegada "dessa gente incomodativa", como a tia Polly designava os hóspedes da sobrinha, foram dias muito trabalhosos para Pollyanna, mas foram também dias alegres, pois ela não se deixava desanimar por mais difíceis que fossem os problemas a resolver. Tendo convocado Nancy e a irmã mais nova desta, Betty, para a ajudar, Pollyanna percorreu sistematicamente a casa, quarto por quarto e preparou tudo com muito esmero para o maior conforto e comodidade dos seus tão desejados hóspedes. Mrs. Chilton pouco ou nada podia ajudar, ou porque não se sentia bem, ou porque a sua atitude mental, em relação àquela ideia não era de todo favorável, já pelo seu orgulho doentio, já por preconceitos atávicos. Murmurava constantemente:- Ai, Pollyanna, Pollyanna, só de pensar que o solar dos Harrington se vai tornar nisso!- Que tem de mal? - procurou Pollyanna apaziguá-la, rindo. - São os Carew que vêm para o solar dos Harrington! Mas Mrs. Chilton não achou graça nenhuma e apenas respondeu com um olhar de desprezo e um grande suspiro, que a sobrinha aproveitou para se retirar e deixá-la sozinha. No dia combinado, Pollyanna, acompanhada de Thimoty, que era agora dono dos antigos cavalos dos Harrington, dirigiram-se à estação para esperar o comboio da tarde. Até aí, no coração de Pollyanna só havia confiança e alegre expectativa. Mas, ao ouvir o barulho da locomotiva, sentiu-se tomada de um verdadeiro pânico, cheia de dúvidas, desalentada. Compreendeu de súbito a situação na exacta dimensão. Viu-se pouco mais que só. Lembrou-se da riqueza, da posição e dos gostos requintados de Mrs. Carew. Veio-lhe à lembrança o Jamie, certamente mais crescido e diferente do rapazito que conhecera. Foram momentos horríveis, em que só lhe apetecia fugir dali.- Thimoty, sinto-me mal. Diga-lhes que não pude vir - disse ela gaguejando, preparando-se para se ir embora.- Minha senhora! - exclamou Thimoty, espantado. Porém, bastou a Pollyanna olhar para o rosto espavorido de Thimoty. Riu-se e empertigou-se toda.- Pronto, não foi nada! Estão quase a chegar - disse ela embaraçada e de voz ofegante. Não tardou que Pollyanna os reconhecesse imediatamente. Se tivesse alguma dúvida, as muletas nas mãos de um jovem alto, de cabelos castanhos, identificariam as pessoas que aguardava. Durante alguns minutos cumprimentaram-se. E logo a seguir Pollyanna deu consigo na charrete com Mrs. Carew a seu lado e Jamie e Sadie Dean diante de si. A realidade mostrava-lhe agora os seus amigos e não deixava de notar-lhes as alterações que em seis anos se tinham produzido. Quanto a Mrs. Carew, o primeiro sentimento foi de surpresa. Já se tinha esquecido que ela era tão simpática. Também não se recordava que as suas pestanas fossem tão longas e os olhos tão bonitos. Até deu consigo a pensar, invejosamente, como aquele rosto estava de acordo com as medidas do artigo da revista que lera. E, acima de tudo, alegrava-se por não lhe ver os mínimos indícios de tristeza ou amargura. Depois, apreciou Jamie. Também com ele ficou surpreendida. De facto, tornara-se bonito, e tinha mesmo um ar realmente distinto. Quando se fixou nas muletas, a seu lado, é que a garganta se lhe contraiu, com um espasmo de compaixão. De Jamie, Pollyanna virou-se para a Sadie Dean. Quanto às linhas do seu rosto, pareciam-lhe bastante as da rapariga que conhecera em Boston. Mas não foi preciso uma segunda observação para perceber que Sadie, quanto ao cabelo e à maneira de vestir, e sobre o discurso e a disposição era uma Sadie bem diferente, para melhor, claro. Foi, porém, o Jamie que iniciou a conversa mais substancial.- Que bom que foi oferecerem-nos a vossa casa - dirigiu-se ele a Pollyanna. - Nem queira saber o que eu pensei e como me senti quando escreveu a dizer que podíamos vir!- Que foi, então? - perguntou Pollyanna hesitante, de olhos fixos nas muletas, e continuando a sentir a garganta apertada.- Pensei na rapariguinha do Jardim Público com o seu saco de amendoins para Sir Lancelot e Lady Guinevere. Sabia que nos estava a colocar no lugar deles, pois se então tinha um saco de amendoins e nós não tínhamos nenhum não ficaria contente enquanto não os dividisse connosco.- Um saco de amendoins? - disse Pollyanna a rir.- Bom, neste caso, o saco de amendoins são quartos arejados no campo, leite de vaca e ovos a sério - continuou Jamie extravagantemente. - Mas vai dar ao mesmo. E é bom que a avise... Lembra-se de como o Sir Lancelot estava sempre esfomeado?- Está bem, eu assumo o risco - disse Pollyanna, pensando como estava satisfeita por a tia Polly não estar presente para ouvir a confirmação das suas piores previsões assim tão cedo. - Pobre Sir Lancelot! Alguém lhe dará ainda de comer?- Se for vivo alguém lhe há-de dar de comer - interpôs-se Mrs. Carew, bem disposta. - Este trouxa ainda lá vai uma vez por semana. Não tenho dúvidas, porque quando quero flocos para o pequeno-almoço, e não há, dizem-me: "O senhor Jamie deu-os de comer aos pombos, minha senhora! "- Mas, deixe-me que lhe diga. - intrometeu-se Jamie, entusiasmado. E Pollyanna pôs-se a ouvi-lo, com todo o antigo fascínio, contar a história de um par de esquilos num jardim iluminado pelo Sol. Para grande alívio de Pollyanna, o primeiro e receado encontro entre a tia Polly e os Carew, correu melhor do que pensara. Os recém-chegados estavam tão encantados com a casa antiga e tudo o que nela existia, que era impossível a proprietária continuar numa atitude rígida diante deles. Além disso, logo se tornou evidente que o encanto e magnetismo pessoais de Jamie quebraram a própria armadura de desconfiança da tia Polly. Pollyanna respirou fundo assim que se apercebeu de que a tia Polly começara a desempenhar o papel de simpática anfitriã destes hóspedes. Apesar do seu alívio pela alteração de comportamento da atitude da tia, Pollyanna sabia que ainda havia obstáculos a superar, mormente o trabalho a ter. A irmã de Nancy apareceu, mas não era a mesma coisa que a Nancy, como depressa se viu. Além de inexperiente, era lenta. Pollyanna estava receosa que as coisas não corressem pelo melhor. A sua incerteza era tal, que, para si, uma cadeira com pó era um crime e um bolo caído ao chão uma tragédia. Gradualmente, porém, depois de muito instada por Mrs. Carew e por Jamie, Pollyanna passou a encarar os afazeres mais calmamente, aprendendo que os seus temores aos olhos dos amigos não eram uma cadeira com pó ou um bolo caído, mas sim a expressão de preocupação e ansiedade do seu rosto, o que muito preocupava os visitantes. - Como se não fosse suficiente deixar-nos vir! afirmou Jamie. Acredite, não queremos que se mate a trabalhar só para nos dar de comer.- Além disso, não comemos muito - interveio Mrs. Carew a rir - senão arranjamos uma "digestão" como diz uma das minhas raparigas quando a comida não lhe cai bem. Afinal, os novos membros da família adaptaram-se maravilhosamente ao quotidiano da casa. Ainda não tinham passado 24 horas e Mrs. Carew ouvia Mrs. Chilton manifestar interesse sobre o seu novo lar para raparigas trabalhadoras; e Sadie Dean e Jamie discutiam sobre a possibilidade de ajudarem a descascar ervilhas ou a apanhar flores. Os Carew já estavam no solar dos Harrington há quase uma semana, quando uma noite John Pendleton e Jimmy vieram de visita. Pollyanna já os esperava, porque, com efeito, antes dos Carew chegarem, ela tinha-lhes pedido muito que viessem. Foi, pois, orgulhosa que fez as apresentações.- São tão meus amigos que quero que se conheçam bem e que sejam também amigos entre si - auspiciou ela. Pollyanna não ficou nada surpreendida por Jimmy e Mr. Pendleton ficarem impressionados com o encanto e a beleza de Mrs. Carew. Mas a expressão que surgiu no rosto de Mrs. Carew, ao ver Jimmy, surpreendeu-a. Dir-se-ia ter sido uma expressão de reconhecimento.- Não nos encontrámos já antes, Mr. Pendleton?- exclamou Mrs. Carew. Jimmy olhou-a espantado e respondeu:- Penso que não. Ou melhor, tenho a certeza que não. De contrário, tê-la-ia reconhecido - disse, com uma vénia. A sua expressão foi tão enfática que todos riram. E John Pendleton galhofou:- Muito bem, muito bem, meu filho! Eu não o conseguiria fazer tão bem! Mrs. Carew corou ligeiramente, sem deixar de rir com os outros.- Olhe, a sério! - insistiu ela. - Fora de brincadeiras. Existe algo de extremamente familiar no seu rosto! Juraria que já o vi algures, se não o encontrei mesmo!- Quem sabe! - interpôs-se Pollyanna. - Talvez em Boston. Jimmy estuda lá engenharia. Vai construir pontes e barragens quando crescer! - concluiu ela, com alegria, olhando o rapaz com um metro e oitenta, ainda de pé diante de Mrs. Carew. Todos voltaram a rir, com excepção de Jamie. E só Sadie Dean reparou que Jamie em vez de rir, fechou os olhos, como se alguma coisa o magoasse. E só ela sabia porquê, daí que procurasse logo mudar de assunto. Não surpreendeu, pois, que começasse a falar de livros, flores, animais e pássaros, coisas que Jamie conhecia e compreendia. De fato , ninguém se dera conta dessa manobra de Sadie, nem mesmo Jamie. Quando os Pendleton se despediram, Mrs. Carew voltou novamente à sensação curiosa de que já tinha visto o jovem Pendleton. - Tenho a certeza que já o vi - declarou, ela pensativa. - Pode ter sido em Boston, mas. - não concluiu a frase e acrescentou: - É um bonito rapaz! Gosto dele!- Coincide com o meu gosto, também gosto muito dele! - disse Pollyanna. - Aliás sempre gostei do Jimmy.- Já o conhece há muito, não? - perguntou Jamie um pouco triste. - Sim, conheci-o há anos, quando era menina. Chamava-se então Jimmy Bean.- Jimmy Bean! Porquê? Ele não é filho de Mr. Pendleton? - perguntou Mrs. Carew surpreendida.- Não. Só por adopção.- Adopção? - inquiriu Jamie. - Então ele não é filho autêntico, tal como eu? - na voz do rapaz notava-se uma curiosa alegria.- Não. Mr. Pendleton não tem filhos. Nunca foi casado. Pollyanna calou-se de súbito, notando-se que algo mais teria para dizer, o que não passou despercebido a Mrs. Carew e Jamie, que, desconhecendo as causas, se perguntaram a eles próprios: "Será possível que aquele homem, John Pendleton, se tenha apaixonado por Pollyanna?" Naturalmente que foi dúvida que lhes ficou no íntimo e portanto não pôde ser confirmada, embora não ficasse esquecida.

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